24 de abril de 2016

Crítica | Mogli: O Menino Lobo

Neel Sethi em MOGLI: O MENINO LOBO (The Jungle Book)

★★★

The Jungle Book, EUA, 2016 | Duração: 1h45 | Lançado no Brasil em 14 de abril de 2016, nos cinemas | Baseado nos livros de Rudyard Kipling. Roteiro de Justin Marks | Dirigido por Jon Favreau | Com Neel Sethi e as vozes de Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Lupita Nyong'o, Scarlett Johansson, Giancarlo Esposito, Christopher Walken, Garry Shandling.

Pôster/capa/cartaz nacional de MOGLI: O MENINO LOBO (The Jungle Book)
Não fosse a memória emotiva do público em relação à animação clássica homônima, Mogli: O Menino Lobo teria pouquíssimo apelo e muito provavelmente fracassaria nas bilheterias internacionais - isso, claro, se algum estúdio tivesse tido a coragem de dar sinal verde para a produção. Diferentemente do ótimo e recente Cinderela, cujos arquétipos contam com certa atemporalidade e ainda encontram ressonância nos dias atuais, esta refilmagem da produção cinquentenária dos estúdios Disney até consegue se adequar com certa eficiência à linguagem e à tecnologia contemporâneas, mas fica refém da frouxidão e do caráter episódico da trama.

Escrito pelo pouco experiente Justin Marks com base nos livros de Rudyard Kipling e tomando sempre a animação da década de 60 como parâmetro, o filme gira em torno de um garoto humano (Neel Sethi) que, encontrado pela pantera Bagheera (Ben Kingsley) e criado por lobos, tem a selva como seu verdadeiro lar. A presença de Mogli naquele ecossistema, entretanto, não agrada a todos: vítima de ataques de humanos no passado, o perigoso tigre Shere Khan (Idris Elba) anuncia durante uma trégua entre os animais sua intenção de matar o garoto, evitando que este se torne um homem e coloque em risco a fauna da região. Assim, o jovem rapaz acaba sendo obrigado a evadir da área rumo à terra dos homens, deparando-se no caminho com uma série de animais com as mais diversas intenções.

Recorrendo sempre a soluções convenientes para as enrascadas em que Mogli se mete, o roteiro sofre da já mencionada dificuldade de conectar os diversos segmentos da jornada do garoto com a fluidez desejada - e o problema só não é maior graças à decisão acertada de incorporar apenas duas canções (The Bare Necessities e I Wanna Be Like You) da animação clássica à narrativa (há uma terceira, Trust in Me, durante os créditos finais). Além disso, as injeções de humor funcionam muito bem na maior parte do tempo, amenizando as deficiências do roteiro e surgindo como um adicional especial para o público adulto, notório alvo da nostalgia da produção - e não é à toa que, em sua segunda semana em exibição no Brasil, o filme tenha tido sessões dubladas substituídas por legendadas em diversas praças do país.

Neel Sethi em MOGLI: O MENINO LOBO (The Jungle Book)

Sensivelmente mais assustador que o antecessor, Mogli: O Menino Lobo conta com um elenco de vozes estelar que nem sempre satisfaz as necessidades de seus personagens. Em um papel anteriormente assumido por homens em sua maioria, Scarlett Johansson confere à serpente Kaa o tom ao mesmo tempo enigmático e traiçoeiro demandado pela personagem - mas o resultado, seja pelo design do animal ou por alguma outra razão, não é tão satisfatório quanto o esperado. Por outro lado, Bill Murray mostra-se uma escolha divertida, competente e compatível com o preguiçoso, malandro e fiel urso Baloo, enquanto Christopher Walken confere ao primata Rei Louie um ar mafioso absolutamente adequado ao personagem, embora comprometa o número musical estrelado pelo vilão com seu canto medíocre.

Tecnicamente, o filme tem resultados coerentes com o investimento e com a escolha de um diretor como Jon Favreau, habituado ao uso intensivo de efeitos especiais. Toda a ampla variedade de espécies que compõem a fauna daquele ecossistema apresenta um visual extremamente convincente e se movimenta com inquestionáveis e irrepreensíveis complexidade e fluidez. Além disso, o design de produção consegue desenvolver cenários adequados às distintas fases da narrativa, como a sombria porção da floresta que sedia o encontro com Kaa contraposta às floridas, iluminadas e atraentes redondezas que servem de moradia para Baloo. Infelizmente, a onipresença de criações digitais confere uma artificialidade incontornável e prejudicial à estética da produção: em momento algum acreditei que o talentoso e esforçado Neel Sethi estivesse na selva que ambienta a trama - e o surpreendentemente péssimo 3D só piora a situação (repare o desastroso resultado de uma cena envolvendo chuva, por exemplo).

Arrematado com créditos finais que chamam a atenção pela criatividade e bom humor, Mogli: O Menino Lobo aposta na nostalgia do público e na sofisticação da tecnologia para criar a demanda por um remake, algo que por si só, não existiria - e embora o resultado não desperte desgostos particularmente severos, tampouco inspira maiores elogios.

Neel Sethi em MOGLI: O MENINO LOBO (The Jungle Book)

17 de abril de 2016

Crítica | Rua Cloverfield, 10

Mary Elizabeth Winstead e John Goodman em RUA CLOVERFIELD, 10 (10 Cloverfield Lane)

★★★★

10 Cloverfield Lane, EUA, 2016 | Duração: 1h43 | Lançado no Brasil em 7 de abril de 2016, nos cinemas | História de Josh Campbell & Matthew Stuecken. Roteiro de Josh Campbell & Matthew Stuecken e Damien Chazelle | Dirigido por Dan Trachtenberg | Com Mary Elizabeth Winstead, John Goodman e John Gallagher Jr.

Pôster/cartaz/capa nacional de RUA CLOVERFIELD, 10 (10 Cloverfield Lane)
Do topo do meu privilégio masculino, por muito tempo rejeitei a ideia da corrente feminista que defende que "todo homem é um estuprador em potencial". O discurso só passou a fazer sentido para mim quando fiz a leitura correta e entendi que, em situações criticas, a figura masculina, por si só, pode representar uma ameaça palpável para mulheres e despertar nelas um instinto de autopreservação; em outras palavras, é perfeitamente compreensível que uma mulher adote uma postura defensiva, por exemplo, ao cruzar com um homem desconhecido em uma rua deserta, já que a estabilidade mental do sujeito é uma incógnita e agressões misóginas são muitíssimo mais comuns do que gostaríamos.

Entretanto, mesmo já tendo ajustado minha perspectiva em relação ao assunto, continuo sendo e sempre serei um privilegiado indivíduo do sexo masculino - e por maiores que sejam a compaixão e a empatia que nutro pela causa feminista, elas jamais me trarão uma compreensão satisfatória do que é estar no papel oprimido em uma situação dessa natureza. Mencionei tudo isso para destacar que Rua Cloverfield, 10 é, sem dúvidas, um thriller aterrador para todas as audiências, mas deve representar uma experiência ainda mais tensa e penosa para o público feminino.

No filme, escrito por Josh Campbell, Matthew Stuecken e Damien Chazelle, a aspirante a estilista Michelle (Mary Elizabeth Winstead) sofre um acidente automobilístico e acorda horas depois acorrentada ao encanamento de um calabouço. Já suficientemente apavorada, a mulher descobre que o cativeiro é mantido por Howard (John Goodman), um homem mais velho, corpulento e ligeiramente sombrio - e quando ela reivindica sua liberdade e implora que sua integridade seja preservada, o sujeito anuncia misteriosamente que o objetivo daquele cárcere é "mantê-la viva".

John Goodman, Mary Elizabeth Winstead e John Gallagher Jr. em RUA CLOVERFIELD, 10 (10 Cloverfield Lane)

A ambiguidade do personagem de John Goodman é a espinha dorsal do suspense do filme, trabalho esse que o ator veterano desempenha com imensa competência: embora consiga tranquilizar gradualmente a desconfiada Michelle conferindo-lhe certas liberdades, apresentando o abrigo subterrâneo que ambos e o alvoroçado Emmett (John Gallagher Jr.) compartilham e dividindo com ela sua teoria e evidências sobre o suposto ataque químico que assolou a superfície terrestre, o homem exibe uma série de comportamentos ambíguos que, vistos sob um prisma mais pessimista, são perfeitamente dignos de desconfiança - e confesso que, na maior parte do tempo, fui mais otimista e apostei na possibilidade de Howard ser um sujeito com boas intenções.

(Atenção!: o restante do texto contém spoilers)

Todavia, tratava-se de um posicionamento involuntariamente tendencioso (e um pouco machista, preciso admitir) de minha parte e teria sido um imenso erro e um tremendo desserviço caso os roteiristas tivessem seguido por essa vertente: caso o personagem de Goodman tivesse, de fato, boa índole, a postura defensiva de Michelle acabaria soando inoportunamente como equivocada histeria feminina. Assim, quando Howard assassina abruptamente Emmett na virada do segundo para o terceiro ato e ressurge, na cena seguinte, de barba feita, qualquer ambiguidade cai por terra e todas as atitudes suspeitas do homem ganham um contorno mais definido: Howard não é só um homem instável, perigoso e paranoico, mas um legítimo predador sexual, tão ou mais assustador que os inimigos que supostamente aguardam a protagonista do lado de fora do bunker.

Dividindo características remotas com o primo Cloverfield - Monstro, de 2008, Rua Cloverfield, 10 prova que não são necessários grandes recursos para a produção de um suspense de ficção científica eficiente e tematicamente relevante - e não é à toa que a parte mais ordinária e menos interessante do longa é justamente aquela transcorrida no exterior do abrigo, culminando em um desfecho substancialmente menos extasiante que o esperado. Um mero pecadilho para uma junção de esforços artísticos tão bem sucedida.

John Gallagher Jr., Mary Elizabeth Winstead e John Goodman em RUA CLOVERFIELD, 10 (10 Cloverfield Lane)