1 de fevereiro de 2015

Crítica | Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))

★★★★★

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), EUA/Canadá, 2014 | Duração: 1h59 | Lançado no Brasil em 29 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Escrito por Alejando G. Iñárritu & Nicolás Giacobone & Alexander Dinelaris Jr. & Armando Bo | Dirigido por Alejandro G. Iñárritu | Com Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Naomi Watts, Zach Galifianakis, Andrea Riseborough e Amy Ryan.

Via de regra, um filme não pode depender de elementos externos para funcionar - o que não quer dizer, porém, que a experiência não possa ser melhorada caso o espectador consiga associar detalhes e informações que extrapolam os limites do filme àquilo que está sendo posto na tela. Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) é uma obra que se encaixa nesse perfil com louvor: embora funcione perfeitamente bem dentro de suas próprias fronteiras, o novo filme de Alejandro González Iñárritu torna-se incrivelmente mais divertido e simbólico quando percebemos algumas das extrapolações permitidas pelo longa, como as espertas opções de casting da produção ou a conexão entre vários elementos narrativos e o atual momento da indústria cinematográfica.

Escrito pelo próprio Iñárritu ao lado de Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo, o filme gira em torno dos preparativos e ensaios finais de uma peça teatral na Broadway, produzida, adaptada e estrelada pelo ator decadente de meia idade Riggan Thomson (Michael Keaton). Cronicamente desiludido e eternamente assombrando (num sentido quase literal, já que o personagem conversa frequentemente com uma voz em sua cabeça, atribuída ao herói Birdman) pelo papel que lhe alçou à fama e marcou de forma irrevogável sua carreira, Riggan atravessa uma crise pessoal enquanto tenta resolver pendências com a filha e assistente pessoal Sam (Emma Stone), definir a natureza da relação íntima com a colega de elenco Laura (Andrea Riseborough) e, sobretudo, lidar com a arrogância, as excentricidades e os métodos profissionais de um ator inserido no elenco de última hora, o célebre Mike Shiner (Edward Norton).

Produzido e lançado numa época em que grandes produtoras já possuem seus calendários de continuações, reboots, spin-offs e crossovers de filmes de super-heróis da próxima década programados e amplamente divulgados, no embalo do inquestionável sucesso da franquia Marvel pós-Homem de Ferro, Birdman é hábil e inteligente em sua sátira a diversas particularidades deste movimento que tem redefinido o mercado de cinema atual. Pra início de conversa, o diálogo em que o advogado e amigo pessoal de Riggan, Jake (Zach Galifianakis), sugere nomes de atores como Michael Fassbender e Jeremy Renner para suprir a lacuna aberta no elenco apenas para constatar, logo em seguida, que ambos encontram-se indisponíveis por envolvimento em suas respectivas franquias de super-heróis só não é mais afiado e jocoso do que a solução encontrada para o problema: convocar o ator substituto Mike Shiner, ironicamente vivido por um dissidente das adaptações de quadrinhos (aos que não se recordam, Edward Norton deu vida ao Hulk no início da recente fase áurea da franquia, mas veio a ser substituído por Mark Ruffalo).

Zach Galifianakis, Naomi Watts e Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))

Ainda no que diz respeito ao elenco, é impossível ignorar a riqueza de significado da escalação de Michael Keaton para o papel central, considerando que, assim como o protagonista, o ator encontra-se em um momento pouco próspero de sua carreira e, até hoje, é lembrado por ter assumido a capa do Batman na expressiva e bem sucedida retomada do personagem na década de 80 (e, nesse sentido, é igualmente divertido que, em determinada ocasião, Riggan deixe transparecer certa inveja de George Clooney, cuja carreira é infinitamente mais bem sucedida que a de Keaton, embora seu Batman & Robin seja substancialmente mais embaraçoso). Para completar, o alterego Birdman é certamente uma sacada genial do roteiro, podendo funcionar em diferentes níveis: embora a metáfora seja óbvia e clara (a voz reflete a influência intensa e nociva que o sucesso do personagem exerceu sobre a vida e carreira do protagonista), os poderes telecinéticos de Riggan podem tanto ser vistos como reais quanto encarados como fruto de algum transtorno esquizofrênico do sujeito, que teria passado a acreditar possuir as mesmas habilidades do herói fictício em virtude da dificuldade de se desvincilhar de sua imagem.

O que nos leva, naturalmente, à decisão dos realizadores de narrar o filme praticamente inteiro em um único extenso plano-sequência, constituído por vários segmentos unidos por elipses e cortes razoavelmente bem disfarçados. Além de limitar o tempo e o espaço da narrativa (tudo o que precisa ser mostrado ocorre nas redondezas do teatro, em um período de poucos dias), essa decisão confere à narrativa uma espécie de atmosfera de sonho ou devaneio - hipótese reforçada por aparições eventuais de um baterista, que surge inesperadamente executando trechos da trilha sonora dentro do próprio universo diegético do filme. Mais do que isso, o excelente e sofisticado trabalho de câmera cria a necessidade logística de reunir um elenco que dê conta do recado, respeitando o texto, as marcações e toda a mise-en-scène por vários minutos a fio - e é aí que chegamos a outro grande acerto do projeto, com um Zach Galifianakis (Os Candidatos) surpreendentemente contido e excepcionalmente eficiente, uma Amy Ryan lamentavelmente apagada e com pouca função, uma Naomi Watts (O Impossível) espetacular como sempre (e remetendo levemente à sua Ellie Parker), uma Andrea Riseborough (Oblivion) terminando de chegar pra ficar, uma Emma Stone (Amor a Toda Prova) competente e esforçada, um Edward Norton (O Legado Bourne) altivo e enervante e um Michael Keaton seguro e em pleno domínio do personagem.

Construindo seu discurso com cuidado, dando atenção até aos menores detalhes (no auge da crise do protagonista, por exemplo, um outdoor inofensivo de O Homem de Aço pode ser visto à distância, no fundo do quadro), Birdman segue consiste e instigante em seus posicionamentos até os momentos finais, quando ainda propõe reflexões sobre o papel da crítica ou a catarse às vezes vazia oferecida ao público por blockbusters e seus megalomaníacos e escandalosos efeitos especiais, ponto este defendido em um dos planos mais impecáveis e emblemáticos da projeção. Trata-se, certamente, de uma obra surpreendente, complexa e estimulante em que um grande cineasta, cuja carreira admirável vinha sendo fundamentada em dramas pesados e soturnos, sai de sua zona de conforto para, de certa forma, convidar a indústria e o público a saírem de suas próprias.

Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))