11 de fevereiro de 2015

Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

Jamie Dornan e Dakota Johnson em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)


Fifty Shades of Grey, EUA, 2015 | Duração: 2h05m11s | Lançado no Brasil em 12 de fevereiro de 2015, nos cinemas | Baseado no livro de E.L. James. Roteiro de Kelly Marcel | Dirigido por Sam Taylor-Johnson | Com Dakota Johnson, Jamie Dornan, Eloise Mumford, Victor Rasuk, Jennifer Ehle, Luke Grimes, Rita Ora e Marcia Gay Harden.

Pôster/capa/cartaz nacional de CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)
Poucas coisas nesse mundo são mais apropriadas e fazem mais sentido do que Cinquenta Tons de Cinza ter se originado como uma fanfic de Crepúsculo. Baseado no livro escrito por uma fã de Edward e Bella, esta adaptação cinematográfica apresenta ao público um romance monotônico que em várias ocasiões remete ao casal concebido por Stephenie Meyer, desde as trocas cafonas de juras de amor, passando pela natureza doentia da relação e culminando no comportamento sonso e autodestrutivo de sua protagonista.

Adaptado para o cinema por Kelly Marcel a partir do livro homônimo de E.L. James, o filme mostra como a atração mútua entre a estudante de literatura Anastasia Steele (Dakota Johnson) e o bilionário filantropo Christian Grey (Jamie Dornan) se converte em cento e vinte e cinco minutos de aborrecimento para o espectador. Avesso a relacionamentos convencionais e moderadamente misterioso, o Sr. Grey logo surge com uma proposta inusitada e ousada para a jovem Ana: estabelecendo um respaldo jurídico para a realização das fantasias sexuais do sujeito, a mulher deve assinar um contrato que a coloca no papel submisso de uma relação de dominação, transformando-a em uma espécie de escrava sexual do ricaço. Entretanto, quando a garota hesita diante das condições do acordo e confessa ainda ser virgem, o homem opta por baixar a guarda, reduzir o ritmo e introduzi-la no mundo do sexo e do sadomasoquismo gradualmente, reconfigurando a dinâmica do casal de um modo que nenhum dos dois esperava.

Rodeado, já de antemão, por discussões a respeito da forma como a relação íntima dos personagens reflete os papéis sociais de homens e mulheres, Cinquenta Tons de Cinza até se esforça para não botar mais lenha na fogueira e tenta se esquivar do suposto teor misógino do material original - e também pudera, considerando que a produção é escrita, adaptada, dirigida e protagonizada por mulheres, algo significativo e pouquíssimo usual. Vivida pela pouco conhecida e não muito talentosa Dakota Johnson, Anastasia é uma mulher modesta e insegura que, seduzida pelo charme de Christian, torna-se demasiadamente próxima do homem em busca de algo que ele não está apto ou disposto a oferecer, sendo pouco a pouco arrastada na direção do "salão de jogos" (apelido dado ao quarto dos sonhos de praticantes de BDSM) do luxuoso apartamento de Grey - e nem mesmo um conselho sincero da melhor amiga ("Faça as coisas no seu próprio tempo"), na fala mais lúcida de toda a projeção, parece surtir grandes efeitos no comportamento de Ana.

Da mesma forma, embora a protagonista imponha certos limites, tente eventualmente assumir o controle da relação e até mesmo ironize certas posturas risíveis de Christian (como no momento em que o sujeito assume de vez sua persona Edward Cullen e diz que os dois "precisam se afastar" e "não devem mais se ver", apenas para contradizer a si próprio algumas horas mais tarde), a personagem de Johnson também toma decisões incompreensíveis que inevitavelmente a desvalorizam como pessoa e mulher: reunida com o Sr. Grey para discutir cláusulas específicas do contrato, Ana levanta questionamentos extremamente pontuais, geralmente relacionadas a práticas sexuais específicas, mas permite que sejam mantidas exigências absurdas, que diminuem substancialmente suas liberdades como indivíduo (o documento dita até mesmo os hábitos alimentares que devem ser adotados pela contratada). Por fim, a diretora Sam Taylor-Johnson (O Garoto de Liverpool) pelo menos acerta ao fazer com que as relações sexuais dos personagens sejam ou pareçam consensuais - algo que, aparentemente, nem sempre ocorria no livro.

Dakota Johnson e Jamie Dornan em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)

Aliás, as tão aguardadas cenas de sexo são uma grande decepção, conduzidas pela cineasta de forma burocrática, convencional e surpreendentemente recatada, considerando o teor do material em que o filme é baseado (os esforços para evitar que a genitália dos atores fique à mostra, por exemplo, chegam a ser uma distração). E já que nem o conteúdo erótico - a grande atração do livro - recebe um tratamento apropriado, resta à roteirista Kelly Marcel tentar transformar o arco dramático do casal em algo pertinente e interessante - e, assim, a narrativa se torna um esforço imenso, tolo e patético de estudar seus personagens vazios e desinteressantes. Nessas circunstâncias, Anastasia se estabelece como uma figura ingênua, iludida e autodestrutiva que, cega de amor, abre espaço para que um abuso absolutamente desnecessário substitua um diálogo franco e esclarecedor - e seu maior pecado é, na realidade, projetar a responsabilidade por sua felicidade na figura de Christian e insistir em um relacionamento explicitamente problemático.

O que nos leva à construção do Sr. Grey, uma das peças-chave do fracasso do filme. Além de plantar pistas que não levam a lugar algum (por que ele evita sistematicamente sorrir?), o roteiro sugere vários conflitos internos do personagem que jamais são explorados com o devido cuidado, como sua aversão a relacionamentos ou a forma como a companhia de Anastasia estremece essa postura. Assim, embora o filme até tente transformá-lo em uma figura atraente (bonito, sarado, charmoso, bom de cama, rico, educado, atencioso, filantropo), Grey se estabelece como um canalha misógino, que verbaliza em várias oportunidades sua natureza possessiva ("Você é minha!") e não se intimida em tentar comprar as pessoas com sua riqueza ou brincar com os sentimentos de terceiros em prol de seus caprichos particulares. Por fim, Cinquenta Tons de Cinza ainda peca por fazer um desnecessário e desleal juízo de valor ao estreitar as fronteiras entre o BDSM e comportamentos abusivos - e embora essa seja uma prática sexual controversa, tudo leva a crer que se trata de uma atividade perfeitamente aceitável caso executada com segurança e, especialmente, de forma consensual.

Povoado por personagens secundários com pouca ou nenhuma função, Cinquenta Tons de Cinza conta com um desenvolvimento lento, frouxo e repetitivo que, por melhor que fosse, não resistiria aos catastróficos 10 minutos finais, quando um esboço vagabundo de clímax dramático abre caminho para um desfecho vergonhoso cuja preguiça, embora imensa e assustadora, ainda assim não supera a nossa pelas duas horas desperdiçadas.

Jamie Dornan em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)

10 de fevereiro de 2015

A Casa dos Mortos

Scott Mechlowicz, Alex Goode, Aaron Yoo, Cody Horn, Dustin Milligan e Megan Park em A CASA DOS MORTOS (Demonic)

Alguns anos e um par de fracassos na carreira do malaio James Wan separam o sucesso inesperado de Jogos Mortais e o lançamento do bem sucedido Sobrenatural, quando o cineasta voltou a chamar a atenção do público e da crítica - mas foi só em 2013, com Invocação do Mal e Sobrenatural: Capítulo 2 transformando US$ 25 milhões de orçamento em US$ 480 milhões de bilheteria, que Wan se estabeleceu como um dos nomes mais importantes do cinema de terror da atualidade. Entretanto, contrariando as expectativas em relação a seu próximo projeto, o diretor surpreendeu ao assumir o comando do sétimo capítulo da franquia Velozes & Furiosos - o que não o impediu, entretanto, de manter-se ativo paralelamente no gênero que lhe rendeu fama, atuando como produtor no lucrativo Annabelle (spin-off de Invocação do Mal) e neste terrível A Casa dos Mortos.

Escrito pelo diretor Will Canon ao lado de Doug Simon e do argumentista Max La Bella, o filme acompanha um grupo de jovens que, interessados em matérias relacionadas ao ocultismo, decidem passar a noite em uma casa tida como mal assombrada e que, décadas antes, sediou uma bizarra e mal esclarecida chacina. Paralelamente, o longa retrata os esforços do detetive Mark Lewis (Frank Grillo) e da psicóloga Elizabeth Klein (Maria Bello) para desvendar os eventos ocorridos no local durante a permanência do grupo, que culminou em mortos, desaparecidos e um jovem em estado de choque cujo depoimento volátil só torna o caso ainda mais entranho e perturbador.

Produção enxuta que aposta em um elenco de segunda linha e em uma trama com poucos cenários e aparatos simples, A Casa dos Mortos depende imensamente de um roteiro inteligente e bem escrito e de uma direção firme para funcionar - e é justamente a falta desses elementos que condena de vez o projeto. Apelando para vários dos clichês mais batidos ligados a casas assombradas, ritos satânicos e possessão demoníaca, o texto ainda ousa vincular a péssima explicação por trás dos mistérios a reviravoltas absurdas que, vistas em retrospecto, apenas evidenciam a falta de criatividade e a arbitrariedade por trás do argumento de La Bella.

Por causa disso, pouco pode ser feito pelo desconhecido Will Canon para salvar a produção: os personagens e o pano de fundo da trama são incrivelmente mal desenvolvidos, o uso de câmeras amadoras pelos jovens (remetendo ao subgênero found footage) é falho e mal explorado e os poucos momentos de tensão são ofuscados por incontáveis sustos vazios, provocados, como sempre, por vultos, espíritos e explosões repentinas da trilha sonora. Além disso, o descaso com a inteligência do espectador é explícito em vários momentos, como naquele em que o simples mal funcionamento de uma caixa de música torna-se uma pista inexplicavelmente clara de que certo tapete disposto em outro cômodo da casa merece ser investigado.

Com pouco mais de 80 minutos de duração, A Casa dos Mortos é um projeto sem personalidade cujo desfecho, supostamente espetinho e terrificante, apenas causa raiva pela imbecilidade, vergonha pela presunção e uma rebarba de alívio, por sabermos que o martírio de assistir ao filme chegou ao fim.


Demonic, EUA/Reino Unido, 2015 | História de Max La Bella. Roteiro de Will Canon, Doug Simon e Max La Bella | Dirigido por Will Canon | Com Dustin Milligan, Frank Grillo, Maria Bello, Cody Horn, Scott Mechlowicz, Megan Park, Alex Goode, Aaron Yoo.

9 de fevereiro de 2015

Crítica | Corações de Ferro

Brad Pitt, Jon Bernthal, Shia LaBeouf, Logan Lerman e Michael Peña em CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

★★★★

Fury, EUA/China/Reino Unido, 2014 | Duração: 2h14m26s | Lançado no Brasil em 5 de fevereiro de 2015, nos cinemas | Escrito por David Ayer | Dirigido por David Ayer | Com Brad Pitt, Logan Lerman, Shia LaBeouf, Jon Bernthal, Michael Peña, Brad William Henke, Jason Isaacs, Jim Parrack, Anamaria Marinca e Alicia von Rittberg.

Pôster/capa/cartaz nacional de CORAÇÕES DE FERRO (Fury)
A violência é, sem dúvida, a matéria-prima central da carreira de David Ayer. Responsável pelo roteiro ou pela direção de filmes como Dia de Treinamento e Marcados Para Morrer, o cineasta não deixa, todavia, de investigar e discutir em seus trabalhos de que modo toda essa violência afeta e devasta o ser humano - e, deixando de lado os longas policiais e voltando-se para uma história ambientada em um cenário de guerra, Ayer dá sequência a esse empenho em Corações de Ferro com relativa eficiência.

O ano é 1945 e, embora a Segunda Guerra esteja perceptivelmente próxima do fim, os Aliados seguem no confronto com uma fraqueza clara e particular: seus tanques são expressivamente inferiores aos dos inimigos. Nesse contexto, o roteiro acompanha o sacrifício da equipe à bordo do tanque Fury, comandada pelo sargento Wardaddy (Brad Pitt) e para a qual cada dia sobrevivido é uma grande vitória. Quando o motorista auxiliar do grupo é morto em combate, o jovem datilógrafo Norman Ellison (Logan Lerman) é colocado no posto contra a vontade de todos, incluindo dele próprio - e seu notório despreparo para encarar os horrores da guerra estabelece a ponte imediata entre o espectador e o filme.

E, de modo geral, David Ayer se aproveita muito bem disso: vivido pelo promissor Logan Lerman (As Vantagens de Ser Invisível), Norman é um rapaz assustadiço que, embora capaz de digitar 60 palavras por minuto, não tem sangue frio ou estômago para tirar a vida de outro ser humano - algo que, em um cenário como aquele, pode acarretar consequências graves para os colegas e para ele próprio. Infelizmente, o roteiro peca por trabalhar o enrijecimento do personagem mais em torno de um evento específico do que do somatório de situações a que Norman é exposto, desperdiçando a construção gradual da deterioração psicológica do rapaz em prol de uma explicação mais redonda, pontual e de fácil compreensão para o público. Aliás, os propósitos da longa cena ambientada no apartamento de duas alemãs jamais ficam claros: o tempo e a atenção que o diretor dedica àquela situação denota sua suposta importância, mas apenas as personalidades dos tripulantes do Fury são sedimentadas em definitivo, enquanto nenhum outro tema mais delicado ou intimista é desenvolvido ou explorado de fato.

Logan Lerman e Brad Pitt em CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

Por outro lado, o filme acerta ao estabelecer os soldados como figuras humanas irremediavelmente devastadas pela guerra desde o início da projeção, quando os rostos sujos e insatisfeitos dominados por semblantes fechados são exibidos individualmente - o que funciona melhor, talvez, do que exibir o personagem de Brad Pitt se afastando do pelotão em duas situações distintas atrás de privacidade para abandonar sua postura durona por alguns segundos e externalizar seus verdadeiros sentimentos, o que soa ligeiramente repetitivo. Da mesma forma, o filme não economiza na visceralidade da representação do campo de batalha, transformando aquele espaço em um ambiente sempre sujo, inóspito e hostil e exibindo cadáveres, mutilações e alvejamentos de forma gráfica e chocante.

Ainda nesse sentido, algumas sequências de confronto merecem nota pelo resultado eficiente e impactante: intensificando o perigo da situação ao exibir projéteis como pequenos traços de luz bem visíveis cortando o ar, passagens como aquela em que os Aliados enfrentam anti-tanques na orla de uma floresta são muitíssimo bem conduzidas e finalizadas, com um trabalho impecável de montagem e mixagem de som. Infelizmente, o embate final não merece os mesmo elogios: ambientada em um fim de tarde (cujo escurecimento veloz chega a distrair o espectador), a sequência não facilita minimamente a compreensão do público quanto à geografia do confronto e jamais deixa claro a que lado pertence a vantagem ao longo do embate, já que nunca é possível saber ao certo quantos adversários ainda persistem na batalha.

Porém, não é só em aspectos técnicos que o ato final decepciona: a motivação por trás da escolha de embarcar naquele confronto em particular, embora razoavelmente justificada pelo psicológico retalhado de alguns dos personagens, é extremamente questionável, soando como uma espécie inoportuna de glorificação da guerra e da honraria por trás da braveza e da coragem dos combatentes. Somando-se a isso os problemas já mencionados e o uso abusivo e eventual de algumas convenções do gênero, Corações de Ferro se estabelece como um lançamento que, embora não acrescente muito ao assunto, faz relativamente bem o trabalho de representar a guerra com a frieza e brutalidade que lhe é particular.

CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

7 de fevereiro de 2015

Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo


★★★★

Foxcatcher, EUA, 2014 | Duração: 2h09 | Lançado no Brasil em 22 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Escrito por E. Max Frye e Dan Futterman | Dirigido por Bennett Miller | Com Steve Carell, Channing Tatum, Mark Ruffalo, Sienna Miller, Vanessa Redgrave, Anthony Michael Hall.

Pôster/capa/cartaz nacional de FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)
O subtítulo nacional de Foxcatcher figura entre as decisões mais mesquinhas tomadas por uma distribuidora brasileira nos últimos tempos. Explicitando o teor de um episódio que só é apresentando ao público em um momento tardio da narrativa, o subtítulo assume deliberadamente o risco de prejudicar a experiência daqueles que, como eu, entrarem na sala de cinema sabendo pouco ou nada sobre os acontecimentos reais que inspiraram a produção – e considerando que o "choque" só é consumado de fato nos minutos finais da projeção, a distribuidora acaba provendo ao público brasileiro duas horas de inquietude e expectativas desnecessárias que fatalmente comprometem, mesmo que em pequeno grau, o impacto do desfecho.

Felizmente, o filme é eficaz o bastante para resistir, alheio a esses prejuízos, como uma obra suficientemente interessante. Escrito por E. Max Frye e Dan Futterman, o roteiro acompanha Mark Schultz (Channing Tatum), um lutador que, como muitos esportistas, segue uma rotina de treinamento em que sua dedicação é inversamente proporcional ao suporte financeiro que recebe. Nesse contexto, Mark é surpreendido pela proposta do multimilionário John E. du Pont (Steve Carell), que lhe oferece remuneração mensal, moradia completa e acesso às instalações de ponta em sua propriedade, de modo que o sujeito ingresse na Equipe Foxcatcher e dê sequência à sua preparação para os Jogos Olímpicos de 1988.

O que exatamente o misterioso e endinheirado du Pont pretendia obter como retorno do investimento é uma dúvida que imediatamente intriga os personagens e, como não poderia deixar de ser, acaba sendo compartilhada pelo público – e este é apenas o embrião do cuidadoso estudo de personagem que conduz a narrativa dali em diante, quando os realizadores passam a investigar e tentam decifrar a personalidade por trás da fala mansa, da postura travada e das ações eventualmente inusitadas do milionário. Nesse sentido, o desempenho de Steve Carell (Amor a Toda Prova) é certeiro e louvável: conhecido por seu impecável timing cômico, o ator surge em cena com diversas próteses faciais e investe em uma composição (do tom de voz à linguagem corporal) ao mesmo tempo marcante e contida, transformando du Pont em um indivíduo absolutamente difícil de ser lido.

Steve Carell em FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)

Por essas e outras, é natural e esperado que o filme se afaste, pelo menos em alguns aspectos, da história real – e mesmo sem estar familiarizado com os detalhes do caso, tudo me leva a crer que os realizadores acertaram ao investir mais na construção de uma figura consistente como personagem do que no retrato fiel de uma personalidade real, especialmente em se tratando de um indivíduo cujas reais percepções sobre o mundo permanecem um mistério. Dessa forma, os roteiristas pincelam várias pistas ao longo da narrativa que ajudam o público a especular sobre as motivações por trás das atitudes mais extremas do personagem: socialmente inapto, solitário e ególatra inveterado, du Pont parece assumir um comportamento obsessivo e possessivo na relação com Mark, que foge dos padrões esperados tanto de uma amizade quanto de um vínculo profissional. Além disso, a prioridade dada à família em detrimento da carreira e a personalidade centrada do irmão do atleta, o também lutador David Schultz (Mark Ruffalo), parecem soar como uma pedra no sapato de du Pont, já que, ao contrário do caçula, o personagem de Ruffalo não parece enxergar motivo para ceder tão facilmente aos caprichos do ricaço – como fica evidente na passagem em que David fica visivelmente desconfortável ao ser induzido a tecer elogios inverídicos sobre du Pont diante de uma câmera e na presença do próprio.

Porém, embora o treinador vivido por Steve Carell seja a figura mais marcante e intrigante da trama, os demais personagens não são negligenciados pelo longa: com uma abordagem desapressada e intimista que remete a seu trabalho em Capote, o diretor Bennett Miller constrói o progresso e a eventual ruína de Mark de forma correta e cuidadosa, contando com um bom desempenho do esforçado Channing Tatum (O Destino de Júpiter). Já Mark Ruffalo (Os Vingadores), dando sequência a um ano admirável após o excelente trabalho no telefilme The Normal Heart, destaca-se por transformar com enorme talento David em um sujeito simples, batalhador, centrado e imensamente devoto à família – o que, eventualmente, o obriga a se dividir entre o irmão (conduzindo-o, de tabela, para perto de du Pont) e a esposa e os filhos, conforme as necessidades mais imediatas de cada um.

Dominado por uma atmosfera sempre fria e triste, Foxcatcher apresenta ao público uma história que, por incrível que pareça, não conta com um potencial cinematográfico tão evidente assim – e o simples fato de ter resultado em uma obra tão surpreendentemente eficaz já diz bastante sobre seus méritos.

Mark Ruffalo e Channing Tatum em FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)

5 de fevereiro de 2015

O Jogo da Imitação

Benedict Cumberbatch em O JOGO DA IMITAÇÃO (The Imitation Game)

Segundo estimativas, os trabalhos comandados pelo matemático Alan Turing (Benedict Cumberbatch) durante a 2ª Guerra Mundial teriam reduzido a duração do confronto em aproximadamente dois anos, evitando que algo em torno de 14 milhões de pessoas perdessem a vida. Nada disso teria acontecido, entretanto, se a homossexualidade de Turing tivesse chegado ao conhecimento das autoridades mais cedo, fazendo com que o sujeito fosse encarcerado por atentado ao pudor antes de quebrar o elaborado código Enigma - o que prova, de forma irrefutável, que a estupidez e a mesquinharia são um câncer da humanidade, podendo refletir drasticamente na vida todo um coletivo de pessoas mesmo quando direcionadas a um indivíduo em particular.

Escrito por Graham Moore com base no livro de Andrew Hodgers, O Jogo da Imitação reencena a história real do matemático que, considerado um dos melhores e mais brilhantes de sua área, assumiu o comando de uma equipe altamente qualificada com o objetivo de quebrar o complexo código Enigma, tido até então como indecifrável e utilizado pelos nazistas para troca de mensagens criptografadas. Desacreditado por seus superiores e colegas de trabalho, Turing precisou correr contra o tempo e enfrentar uma série de obstáculos logísticos e financeiros para construir sua máquina que, atualmente, é reconhecida como um dos componentes pioneiros da computação moderna.

Versão mais contida e menos afetada de seu Sherlock da série britânica de mesmo nome, Benedict Cumberbatch assume com talento o papel de um sujeito ciente das próprias capacidades intelectuais extraordinárias e ligeiramente orgulhoso em relação a elas, transformando Turing em uma figura cuja personalidade persistente certamente influenciou imensamente o andamento do projeto secreto do governo britânico. Já Keira Knightley merece elogios simplesmente por estar bem e não se constranger como o fez em Um Método Perigoso, enquanto o diretor Morten Tyldum (Headhunters) decepciona por um trabalho extremamente burocrático e sem personalidade na direção, fazendo com que a produção se assemelhe estética e narrativamente a um telefilme.

Contando uma história real importante e desmerecidamente negligenciada e pouco reconhecida, O Jogo da Imitação chega aos cinemas brasileiros poucos dias depois da eleição de um indivíduo conservador e homofóbico para a presidência da nossa Câmara de Deputados, que prometeu empatar deliberadamente diversas pautas progressistas. Prova maior de que, retomando a discussão levantada no primeiro parágrafo, a sociedade ainda tem muito a aprender com casos como o de Turing.

★★★

The Imitation Game, Reino Unido/EUA, 2014 | Baseado no livro de Andrew Hodgers. Roteiro de Graham Moore | Dirigido por Morten Tyldum | Com Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode, Rory Kinnear, Allen Leech, Matthew Beard, Charles Dance e Mark Strong.

4 de fevereiro de 2015

Crítica | Bob Esponja: Um Herói Fora d'Água

BOB ESPONJA: UM HERÓI FORA D'ÁGUA (The SpongeBob Movie: Sponge Out of Water)

★★★

The SpongeBob Movie: Sponge Out of Water, EUA, 2015 | Duração: 1h32m25s | Lançado no Brasil em 5 de Fevereiro de 2015, nos cinemas | Baseado na série animada de Stephen Hillenburg. História de Stephen Hillenburg & Paul Tibbitt. Roteiro de Glenn Berger & Jonathan Aibel | Dirigido por Paul Tibbitt | Com Antonio Banderas e as vozes de Tom Kenny, Bill Fagerbakke, Rodger Bumpass, Clancy Brown, Carolyn Lawrence e Mr. Lawrence.

Pôster/capa/cartaz nacional de BOB ESPONJA: UM HERÓI FORA D'ÁGUA (The SpongeBob Movie: Sponge Out of Water)
Em uma situação normal, eu não seria capaz de explicar como a adaptação cinematográfica de um desenho animado exibido há mais de 15 anos consegue ser bem sucedida artisticamente mesmo reutilizando a premissa mais tradicional e reiterada de toda a trajetória da série televisiva. Entretanto, não estamos falando de um cartum qualquer: trata-se do já icônico Bob Esponja, cujos personagens e universo são tão incrivelmente carismáticos e divertidos que conseguem não só fazer uma trama requentada soar como uma ideia singular e merecedora de atenção, mas também agradar espectadores das mais diversas idades.

Escrito por Glenn Berger e Jonathan Aibel a partir de um argumento do diretor Paul Tibbitt e do criador do personagem, Stephen Hillenburg, Bob Esponja: Um Herói Fora d'Água introduz até bem didaticamente a Fenda do Biquíni, seus habitantes e costumes, apenas para voltar as atenções para o vilão Plankton - que, como não poderia deixar de ser, continua empenhado em roubar a fórmula do célebre hambúrguer de siri e, com isso, herdar a clientela do Siri Cascudo para seu Balde de Lixo. Entretanto, quando o micro-antagonista está prestes a concluir seu plano maligno definitivo, a fórmula desaparece misteriosamente, sem deixar qualquer tipo de rastro. Desnorteada com a abstinência do sanduíche, a população da Fenda do Biquíni perde a linha e permite que o local se transforme em um hostil cenário pós-apocalíptico - e só quando um aroma familiar vindo da superfície atinge as narinas dos personagens, Bob Esponja se coloca à frente de uma equipe reunida com o intuito de recuperar a fórmula e reinstaurar a paz no fundo do mar.

Resultado de longos anos de refinamento dos personagens e do humor próprio da franquia, Um Herói Fora d'Água consegue ser ainda melhor e mais divertido que o razoável longa-metragem anterior, lançado nos cinemas há mais de uma década: diferentemente daquele filme, este consegue manter os personagens mais envolvidos com os elementos e cenários tradicionais e corriqueiros da série sem, contudo, soar como um mero episódio de 92 minutos. Neste sentido, o roteiro, mesmo com algumas barrigas, adota um ritmo bastante coerente com a duração da narrativa, realizando diversas brincadeiras de gênero e apostando certeiramente na metalinguagem em várias pontos da projeção. Para completar, a visita de Bob e sua turma à terra firme (algo que também ocorreu no filme anterior) traz um frescor interessante à produção: mantendo todo o charme das ilustrações tradicionais, as versões tridimensionais dos personagens são igualmente adoráveis e dão abertura para uma dose considerável de gags envolvendo o choque daqueles seres com o "exótico" mundo da superfície.

BOB ESPONJA: UM HERÓI FORA D'ÁGUA (The SpongeBob Movie: Sponge Out of Water)

Aliás, o bom humor é justamente o segredo do sucesso da produção - e eu poderia muito bem me estender além do necessário com dezenas de exemplos práticos, mas isto apenas atrapalharia a experiência do leitor com o filme. Abraçando a estupidez e a histeria de seus personagens, o roteiro recorre ao nonsense, ao absurdo e ao exagero sempre com propósitos cômicos bem definidos, soando óbvio, gratuito ou apelativo em pouquíssimas ocasiões. Porém, o atrativo principal continua sendo mesmo o personagem-título: alegre, elétrico e bobo ao extremo, Bob Esponja é, antes de mais nada, um indivíduo ingênuo e puro, além de uma bússola moral ambulante e, claro, a única figura em cena capacitada para salvar o dia.

Já o 3D, conforme esperado de um projeto dessa natureza, oscila de acordo com a técnica utilizada no momento: nas cenas em live action, que ocupam apenas uma pequena parcela da narrativa, o efeito é suficientemente válido e notável, enquanto as sequências em animação tradicional em 2D recebem a terceira dimensão com ajustes que falham em otimizar o resultado final, conferindo um aspecto ligeiramente estranho e ineficaz, porém inofensivo, à maior parte das cenas. Já a dublagem nacional, embora naturalmente gere incômodo e estranheza nas cenas envolvendo atores de carne e osso, é um prato cheio para aqueles que foram apresentados à franquia em português - e Tom Kenny que me perdoe, mas o dublador brasileiro Wendel Bezerra é um Bob Esponja magnífico, seguro e legítimo.

Escondendo aqui ou ali surpresas para o público mais grandinho (é impossível deixar passarem batido certos acordes inconfundíveis de Ennio Morricone, por exemplo), Bob Esponja: Um Herói Fora d'Água é um projeto que, apostando em uma fórmula garantida, perde a oportunidade de ousar e tentar alçar voos mais altos - mas como é impossível prever o resultado de uma extravagância dessas, esta deliciosa e despretensiosa tentativa está de bom tamanho.

BOB ESPONJA: UM HERÓI FORA D'ÁGUA (The SpongeBob Movie: Sponge Out of Water)

3 de fevereiro de 2015

Crítica | O Destino de Júpiter

Channing Tatum e Mila Kunis em O DESTINO DE JÚPITER (Jupiter Ascending)

★★★

Jupiter Ascending, EUA, 2015 | Duração: 2h07m25s | Lançado no Brasil em 5 de Fevereiro de 2015, nos cinemas | Escrito por Andy Wachowski & Lana Wachowski | Dirigido por Andy Wachowski e Lana Wachowski | Com Mila Kunis, Channing Tatum, Eddie Redmayne, Sean Bean, Douglas Booth, Tuppence Middleton, Maria Doyle Kennedy.

Pôster/capa/cartaz nacional de O DESTINO DE JÚPITER (Jupiter Ascending)
Chega a ser surpreendente que, mais de uma década após o fim da lucrativa franquia Matrix, a Warner Bros. continue apostando alto no talento dos irmãos Wachowski, especialmente se considerarmos que os dois trabalhos da dupla nesse meio tempo, o excelente Speed Racer e o razoável A Viagem, fracassaram nas bilheterias internacionais. Felizmente, embora o grande público não tenha correspondido financeiramente, o investimento nos cineastas continua se revelando bastante válido do ponto de vista artístico: O Destino de Júpiter pode até ter sua parcela de problemas, mas é bem executado o suficiente pra funcionar como um ótimo entretenimento.

Escrito pelos próprios Andy e Lana, o roteiro se estrutura em torno de pilares bastante conhecidos e previamente explorados: presa a uma rotina fatigante e repetitiva, a faxineira Júpiter Jones (Mila Kunis) é surpreendida pela notícia de que não só existe vida inteligente em outros planetas, mas também que ela própria, uma reles terráquea, tem direito a um título de realeza extraterrestre que a coloca no centro de uma disputa entre poderosos irmãos alienígenas, herdeiros de múltiplos planetas. Jurada de morte, Júpiter é salva pelo licomutante Caine Wise (Channing Tatum) e levada para o espaço, onde descobre o destino trágico reservado para a Terra e faz tudo a seu alcance para tentar revertê-lo.

Não se trata de uma premissa remotamente original e o desenvolvimento da narrativa tampouco melhora este cenário. Constituído por um amontoado de embates, fugas, traições e resgates que mantém a trama em aparente movimento, o roteiro reserva pouco espaço para o desenvolvimento de temáticas paralelas - e tanto as reflexões sobre o real valor da vida quanto aquelas referentes à frustração de confiar insistentemente, em vão, nas boas intenções de terceiros detentores de poder limitam-se às demandas morais mais básicas do texto. Por outro lado, os roteiristas são hábeis ao relacionar, de forma prática e às vezes divertida, toda a gama de conceitos próprios daquele universo fictício à realidade vigente, formulando, por exemplo, explicações inéditas para eventos da história da Terra ou elementos culturais de seu povo (como a extinção dos dinossauros ou a origem da mitologia por trás dos vampiros, respectivamente).

Mila Kunis, Sean Bean e Channing Tatum em O DESTINO DE JÚPITER (Jupiter Ascending)

Primeiro projeto dos Wachowski rodado em 3D (e o efeito é muitíssimo eficiente em várias cenas), O Destino de Júpiter dá novas tonalidades ao lugar-comum da trama através de um elenco carismático, uma direção enérgica e um design de produção deslumbrante e imaginativo. Assumindo o papel do guerreiro altamente habilidoso perseguido por erros do passado, Channing Tatum (Terapia de Risco) é exigido mais como astro de ação do que como ator dramático e corresponde à altura, enquanto Mila Kunis (Oz: Mágico e Poderoso), não tão à vontade nas sequências de ação (a cena, próxima ao desfecho, em que Júpiter atravessa corredores desviando de labaredas é incrivelmente insossa, por exemplo), confere à protagonista um aspecto comum (apesar de sua beleza exótica) e faz de tudo para que Júpiter não se estabeleça como mais uma mocinha indefesa - e embora sua natural falta de habilidade crie a necessidade de ser salva frequentemente, a mulher exibe personalidade e autonomia suficiente para, por exemplo, tomar a atitude de se aproximar de seu interesse amoroso e abrir o jogo em relação a seus sentimentos. Fechando a ala relevante do elenco, Eddie Redmayne (A Teoria de Tudo) dá vida a um vilão cuja natureza obviamente caricata torna admissíveis os excessos e todas as afetações da composição do ator.

Sem grande apego a sutilezas, Andy e Lana Wachowski conduzem as ótimas sequências de ação com competência e energia, ainda que algumas delas careçam de sentido (como aquela em que acompanhamos os longos esforços de Caine para invadir uma fortaleza dentro da qual o personagem, no frigir dos ovos, não tem muito o que realizar). Dando suporte ao trabalho dos diretores, a direção de arte enche os olhos do espectador e consegue dar um frescor surpreendente a elementos utilizados de forma tão recorrente no gênero: os figurinos, as naves e os cenários são grandiosos e possuem um visual todo particular, repleto de objetos de cena curiosos (repare como muitos equipamentos - como certa máquina de tortura - parecem estranhamente arcaicos e anacrônicos) e fortemente influenciados pela arquitetura europeia. Para completar, a qualidade dos efeitos especiais também chama a atenção positivamente: a substituição dos atores por bonecos digitais em planos muito elaborados é praticamente imperceptível, por exemplo.

Fazendo uma reverência estranha a Sinais, de M. Night Shayamalan, e abusando eventualmente da paciência do público com tolices (pra que diabos inventar que abelhas são "geneticamente projetadas para detectar realeza"?), O Destino de Júpiter é uma ficção científica bem eficaz que, em virtude de um roteiro falho e comprometedor, infelizmente não se qualifica para os anais do gênero.

Mila Kunis em O DESTINO DE JÚPITER (Jupiter Ascending)

1 de fevereiro de 2015

Crítica | Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))

★★★★★

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), EUA/Canadá, 2014 | Duração: 1h59 | Lançado no Brasil em 29 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Escrito por Alejando G. Iñárritu & Nicolás Giacobone & Alexander Dinelaris Jr. & Armando Bo | Dirigido por Alejandro G. Iñárritu | Com Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Naomi Watts, Zach Galifianakis, Andrea Riseborough e Amy Ryan.

Via de regra, um filme não pode depender de elementos externos para funcionar - o que não quer dizer, porém, que a experiência não possa ser melhorada caso o espectador consiga associar detalhes e informações que extrapolam os limites do filme àquilo que está sendo posto na tela. Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) é uma obra que se encaixa nesse perfil com louvor: embora funcione perfeitamente bem dentro de suas próprias fronteiras, o novo filme de Alejandro González Iñárritu torna-se incrivelmente mais divertido e simbólico quando percebemos algumas das extrapolações permitidas pelo longa, como as espertas opções de casting da produção ou a conexão entre vários elementos narrativos e o atual momento da indústria cinematográfica.

Escrito pelo próprio Iñárritu ao lado de Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo, o filme gira em torno dos preparativos e ensaios finais de uma peça teatral na Broadway, produzida, adaptada e estrelada pelo ator decadente de meia idade Riggan Thomson (Michael Keaton). Cronicamente desiludido e eternamente assombrando (num sentido quase literal, já que o personagem conversa frequentemente com uma voz em sua cabeça, atribuída ao herói Birdman) pelo papel que lhe alçou à fama e marcou de forma irrevogável sua carreira, Riggan atravessa uma crise pessoal enquanto tenta resolver pendências com a filha e assistente pessoal Sam (Emma Stone), definir a natureza da relação íntima com a colega de elenco Laura (Andrea Riseborough) e, sobretudo, lidar com a arrogância, as excentricidades e os métodos profissionais de um ator inserido no elenco de última hora, o célebre Mike Shiner (Edward Norton).

Produzido e lançado numa época em que grandes produtoras já possuem seus calendários de continuações, reboots, spin-offs e crossovers de filmes de super-heróis da próxima década programados e amplamente divulgados, no embalo do inquestionável sucesso da franquia Marvel pós-Homem de Ferro, Birdman é hábil e inteligente em sua sátira a diversas particularidades deste movimento que tem redefinido o mercado de cinema atual. Pra início de conversa, o diálogo em que o advogado e amigo pessoal de Riggan, Jake (Zach Galifianakis), sugere nomes de atores como Michael Fassbender e Jeremy Renner para suprir a lacuna aberta no elenco apenas para constatar, logo em seguida, que ambos encontram-se indisponíveis por envolvimento em suas respectivas franquias de super-heróis só não é mais afiado e jocoso do que a solução encontrada para o problema: convocar o ator substituto Mike Shiner, ironicamente vivido por um dissidente das adaptações de quadrinhos (aos que não se recordam, Edward Norton deu vida ao Hulk no início da recente fase áurea da franquia, mas veio a ser substituído por Mark Ruffalo).

Zach Galifianakis, Naomi Watts e Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))

Ainda no que diz respeito ao elenco, é impossível ignorar a riqueza de significado da escalação de Michael Keaton para o papel central, considerando que, assim como o protagonista, o ator encontra-se em um momento pouco próspero de sua carreira e, até hoje, é lembrado por ter assumido a capa do Batman na expressiva e bem sucedida retomada do personagem na década de 80 (e, nesse sentido, é igualmente divertido que, em determinada ocasião, Riggan deixe transparecer certa inveja de George Clooney, cuja carreira é infinitamente mais bem sucedida que a de Keaton, embora seu Batman & Robin seja substancialmente mais embaraçoso). Para completar, o alterego Birdman é certamente uma sacada genial do roteiro, podendo funcionar em diferentes níveis: embora a metáfora seja óbvia e clara (a voz reflete a influência intensa e nociva que o sucesso do personagem exerceu sobre a vida e carreira do protagonista), os poderes telecinéticos de Riggan podem tanto ser vistos como reais quanto encarados como fruto de algum transtorno esquizofrênico do sujeito, que teria passado a acreditar possuir as mesmas habilidades do herói fictício em virtude da dificuldade de se desvincilhar de sua imagem.

O que nos leva, naturalmente, à decisão dos realizadores de narrar o filme praticamente inteiro em um único extenso plano-sequência, constituído por vários segmentos unidos por elipses e cortes razoavelmente bem disfarçados. Além de limitar o tempo e o espaço da narrativa (tudo o que precisa ser mostrado ocorre nas redondezas do teatro, em um período de poucos dias), essa decisão confere à narrativa uma espécie de atmosfera de sonho ou devaneio - hipótese reforçada por aparições eventuais de um baterista, que surge inesperadamente executando trechos da trilha sonora dentro do próprio universo diegético do filme. Mais do que isso, o excelente e sofisticado trabalho de câmera cria a necessidade logística de reunir um elenco que dê conta do recado, respeitando o texto, as marcações e toda a mise-en-scène por vários minutos a fio - e é aí que chegamos a outro grande acerto do projeto, com um Zach Galifianakis (Os Candidatos) surpreendentemente contido e excepcionalmente eficiente, uma Amy Ryan lamentavelmente apagada e com pouca função, uma Naomi Watts (O Impossível) espetacular como sempre (e remetendo levemente à sua Ellie Parker), uma Andrea Riseborough (Oblivion) terminando de chegar pra ficar, uma Emma Stone (Amor a Toda Prova) competente e esforçada, um Edward Norton (O Legado Bourne) altivo e enervante e um Michael Keaton seguro e em pleno domínio do personagem.

Construindo seu discurso com cuidado, dando atenção até aos menores detalhes (no auge da crise do protagonista, por exemplo, um outdoor inofensivo de O Homem de Aço pode ser visto à distância, no fundo do quadro), Birdman segue consiste e instigante em seus posicionamentos até os momentos finais, quando ainda propõe reflexões sobre o papel da crítica ou a catarse às vezes vazia oferecida ao público por blockbusters e seus megalomaníacos e escandalosos efeitos especiais, ponto este defendido em um dos planos mais impecáveis e emblemáticos da projeção. Trata-se, certamente, de uma obra surpreendente, complexa e estimulante em que um grande cineasta, cuja carreira admirável vinha sendo fundamentada em dramas pesados e soturnos, sai de sua zona de conforto para, de certa forma, convidar a indústria e o público a saírem de suas próprias.

Michael Keaton em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance))

Crítica | A Teoria de Tudo

Felicity Jones e Eddie Redmayne em A TEORIA DE TUDO (The Theory of Everything)

★★★★

The Theory of Everything, Reino Unido, 2014 | Duração: 2h03 | Lançado no Brasil em 29 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Baseado no livro de Jane Hawking. Escrito por Anthony McCarten | Dirigido por James Marsh | Com Eddie Redmayne, Felicity Jones, David Thewlis, Charlie Cox, Harry Lloyd, Simon McBurney.

Pôster/capa/cartaz nacional de A TEORIA DE TUDO (The Theory of Everything)
"Cinebiografia de Stephen Hawking" não é a melhor nem a mais precisa forma de sintetizar A Teoria de Tudo. Sim, o filme é inteiramente centrado na vida do célebre cientista, mas não se propõe exatamente a narrar de forma fiel e definitiva tudo de mais importante e revelante que aconteceu em sua trajetória pessoal. Em vez disso, o roteirista Anthony McCarten e o cineasta James Marsh (Agente C - Dupla Identidade) optam por desviar o foco das grandes realizações de Hawking (sem ignorá-las, evidentemente) e lançam luz sobre sua caminhada pessoal, voltando-se, naturalmente, para as várias consequências que a doença degenerativa motora acarretaram para sua existência.

Apresentando Stephen (Eddie Redmayne) já como um jovem adulto, o filme resgata o início de sua relação amorosa com Jane (Felicity Jones) e mostra como o avanço da esclerose lateral amiotrófica quase comprometeu irremediavelmente suas pesquisas. Convencido por um médico de que a doença lhe tiraria a vida em um par de anos, o físico tem seu abalo emocional gradualmente revertido pelo suporte dos colegas e amigos e pelo amor da companheira, que se compromete a embarcar de cabeça e às cegas no desafio de manter as melhores condições possíveis para a sobrevida do amado. Porém, o avanço do tempo traz consigo circunstâncias inéditas que, eventualmente, acabam alterando o curso da vida dos personagens.

Embora peque ao representar de forma pouco clara a grandeza dos avanços temporais (um total de décadas se passa e os personagens principais parecem sempre jovens), A Teoria de Tudo conta com grandes atuações da dupla central, que se adaptam com talento às várias fases de seus papéis. Apesar de exagerar nas contrações faciais da fase saudável do personagem, Redmayne (Os Miseráveis) surpreende com um trabalho corporal digno de longos aplausos: além de imprimir de forma convincente a crescente debilidade motora, o ator consegue expressar de forma natural e verossímil o esforço do personagem de vencer o atrofiamento motor e continuar se relacionando com o mundo ao redor, sem exibir qualquer traço de constrangimento ou receio de que seu comportamento pareça patético ou involuntariamente engraçado. Entretanto, o maior acerto de Redmayne é mesmo o sorriso sincero e generoso que ele empresta a praticamente todas as fases do personagem, estabelecendo com eficiência a positividade, a gentileza e o bom humor que, segundo consta, Stephen Hawking preserva até os dias atuais.

Eddie Redmayne em A TEORIA DE TUDO (The Theory of Everything)

Já a adorável Felicity Jones constrói Jane como uma mulher cuja dedicação incondicional ao tratamento do parceiro jamais é passível de questionamento - e chama a atenção, por exemplo, o momento em que a personagem é ágil e precisa ao deferir pancadas surpreendentemente violentas nas costas do marido durante um engasgo, já que ela sabe, melhor do que nós, que aquele montante de força pode ser imprescindível para evitar a morte do homem. (Atenção!: não leia o restante do parágrafo caso desconheça detalhes sobre a vida dos Hawking). Felizmente, o filme não comete o erro óbvio e absurdo de enxergar o amor e a dedicação iniciais de Jane como um contrato irrevogável, evitando julgá-la por se sentir negligenciada, sufocada ou extenuada na relação por quaisquer que sejam as razões. Aliás, ao invés disso, a mulher torna-se uma figura sofrida a seu modo, quando passa a sentir o peso da responsabilidade pelo bem estar de Hawking mesmo que o sentimento que deu origem àquele contexto não exista mais - e a cena em que o casal reconhece o fim do casamento, embora obviamente repleta de liberdades artísticas, é extremamente tocante.

Nunca deixando de lado a importância das pequisas realizadas pelo cientista, A Teoria de Tudo prefere, entretanto, investigar os efeitos que uma doença implacável e devastadora causa em um indivíduo e nas pessoas que o cercam. Assim, o filme é repleto de passagens emblemáticas, nas quais a perda gradual da independência de Stephen é representada de forma sempre sensível e melancólica, como no momento em que uma atividade tão simples quanto subir uma escada torna-se um esforço humilhante e inútil. Da mesma forma, o episódio em que Hawking perde sua já limitada fala transforma-se em um verdadeiro ponto de virada, considerando a importância que a comunicação possui na vida do sujeito - que, ainda assim, enfrenta os novos desafios com surpreendente persistência.

Por fim, o filme também não faz feio ao utilizar linhas centrais dos trabalhos de Stephen como matéria-prima para reflexões sobre diferentes aspectos da narrativa: a busca obsessiva do físico por uma fórmula que resolva qualquer problema entra em choque com a natureza devastadora da doença que o atinge, cuja arbitrariedade carece de explicações, ao mesmo tempo que o empenho de desvendar os mistérios que rodeiam o tempo como quarta dimensão do universo entram em conflito com seu avanço implacável - e a sequência que, estabelecendo um paralelo com a teoria do Big Bang, inverte a direção do tempo e regressa à origem da narrativa é, em poucas palavras, tocante e poética, encerrando com sensibilidade uma obra inspiradora que, involuntariamente, obriga o espectador a olhar para a própria vida, e todos os seus privilégios envolvidos, com outros olhos.

Raffiella Chapman, Eddie Redmayne e Oliver Payne em A TEORIA DE TUDO (The Theory of Everything)

Crítica | A Entrevista

James Franco em A ENTREVISTA (The Interview)

★★★

The Interview, EUA, 2014 | Duração: 1h52 | Lançado no Brasil em 29 de Janeiro de 2015, nos cinemas | História de Seth Rogen & Evan Goldberg & Dan Sterling. Roteiro de Dan Sterling | Dirigido por Evan Goldberg e Seth Rogen | Com James Franco, Seth Rogen, Randall Park, Lizzy Kaplan e Diana Bang.

Pôster/capa/cartaz nacional de A ENTREVISTA (The Interview)Em 2006, uma legião de brasileiros patriotas raivosos lançou uma campanha por e-mail em forma de corrente com o objetivo de boicotar o filme Turistas, baseando-se em suposições sobre a forma pouco lisonjeira como o Brasil e seu povo eram representados pelo terror - o que, inevitavelmente, atraiu muito mais atenção do que aquela bobagem merecia ou receberia. Cinco anos mais tarde, autoridades incompetentes da Justiça Federal baniram A Serbian Film - Terror Sem Limites do circuito nacional sob alegação de conteúdo impróprio - o que, também, gerou curiosidade e interesse que o filme provavelmente jamais conseguiria despertar por conta própria. Eis que, em pleno 2014, as pessoas aparentemente ainda não haviam aprendido o efeito contrário que uma proibição pode produzir: vítima de ameaças de atentados nos cinemas americanos que o exibissem, A Entrevista foi primeiramente adiado, radicalmente cancelado logo em seguida, disponibilizado em mídias digitais pouco depois e, por fim, reagendado em todo o mundo pela Sony, tudo em questão de pouquíssimos dias.

Não consigo imaginar com precisão a dimensão do impacto comercial sofrido pelo filme (aparentemente, não foi pequeno), mas é inegável que toda a confusão lhe serviu como publicidade gratuita - ligeiramente mais merecida do que os lançamentos citados no parágrafo anterior. Escrita por Dan Sterling a partir de uma ideia concebida por ele próprio ao lado dos diretores Evan Goldberg e Seth Rogen, a comédia gira em torno do apresentador Dave Skylark (James Franco) e seu produtor Aaron Rapaport (Seth Rogen), que trabalham juntos em um tabloide televisionado sobre celebridades e afins. Ambiciosos e interessados em entrevistas cada vez mais bombásticas e exclusivas, os amigos decidem tentar marcar um bate-papo com ninguém menos que o Líder Supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-Un (Randall Park). Fã confesso do Skylark Tonight e de outros produtos da cultura norte-americana, o ditador topa conceder a entrevista como estratégia para fomentar sua própria propaganda, ao mesmo tempo em que a CIA tenta usar a proximidade entre Skylark e Jong-Un para arquitetar um atentado contra a vida do governante, evitando assim alegados ataques nucleares iminentes aos EUA.

Pontuado por breves participações de celebridades, A Entrevista atinge seu auge cômico logo no início da projeção com as divertidíssimas pontas de Eminem e Rob Lowe - e embora possua sua dose de humor, toda a etapa que envolve de fato a trama da Coreia do Norte jamais chega ao patamar destes inspirados primeiros momentos. Apelando frequentemente para o nonsense e o exagero, a estadia da dupla na nação asiática é ditada por subtramas razoavelmente batidas: em contato direto e íntimo com Kim por longas horas, Skylark opta por abortar o plano após se ver convencido de que há um bom coração dentro do peito do ditador e que o país encontra-se em boas condições - constatações absurdas que só tornam-se críveis porque James Franco (Oz: Mágico e Poderoso), em uma composição surpreendentemente eficaz para esses propósitos, transforma o protagonista em um sujeito ingênuo, estúpido, excêntrico e arrogante, participando ativamente do estopim de praticamente todos os conflitos da trama. Já Seth Rogen (50%), cuja carreira resume-se a papéis que não passam de ligeiras variações de si mesmo (algo que o próprio reconheceu e brincou a respeito no divertido É O Fim), pende desta vez para uma figura mais centrada, funcionando como um necessário contraponto à expansividade do protagonista.

James Franco, Lizzy Caplan e Seth Rogen em A ENTREVISTA (The Interview)

Feliz nas alfinetadas endereçadas à mídia em geral (Skylark é veemente ao afirmar que "dar ao público o que ele quer" é a regra número um do jornalismo), A Entrevista peca, por outro lado, por exibir uma visão turva, inconstante e por vezes distorcida das questões políticas que opta por abraçar e tenta discutir. Se por um lado o filme acerta ao ironizar o intervencionismo violento e arbitrário norte-americano ("Quantas vezes os EUA vão cometer o mesmo erro?", alguém pergunta em determinado momento, e é impulsivamente respondido pelo personagem de Franco com um "Quantas vezes for necessário!"), por outro os roteiristas concebem um terceiro ato cuja dose elevada de violência gráfica, vinda de todos os lados, parece legitimar de alguma forma o uso da força quando esta exibe resultados benéficos para os "mocinhos" (e para a humanidade, no contexto fictício superficial estabelecido pelo roteiro). Ora (não leia o restante do parágrafo caso se incomode com spoilers sobre o desfecho), o assassinato de Jong-Un é um ato condenável como plano da CIA, mas aceitável quando os personagens precisam escapar da enrascada em que eles próprios se meteram, numa espécie escapista de legítima defesa? E caso a personagem Sook (Diana Bang) não despontasse como uma conveniente aliada interna e íntegra, quais resultados seriam esperados de toda a confusão inconsequente armada por Skylark e Aaron em terras coreanas?

Fazendo uso hilário da canção Firework de Katy Perry, que funciona tanto como ironia fina sobre a glamourização da violência quanto para outros propósitos próprios da trama, A Entrevista chega aos cinemas tentando botar um ponto final em toda a controvérsia a que fora exposto nos últimos meses - e considerando a natureza do terrorismo sofrido pela produção, bem como os autores das ameaças (hackers norte-coreanos, segundo consta), fica comprovado que, por mais ingênuas ou superficiais que muitas das críticas formuladas pelos roteiristas possam ser, várias delas estão ao menos bem endereçadas.

Randall Park e James Franco em A ENTREVISTA (The Interview)

Crítica | Grandes Olhos

Christoph Waltz e Amy Adams em GRANDES OLHOS (Big Eyes)

★★★

Big Eyes, EUA, 2014 | Duração: 1h46m | Lançado no Brasil em 29 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Escrito por Scott Alexander & Larry Karaszewski | Dirigido por Tim Burton | Com Amy Adams, Christoph Waltz, Krysten Ritter, Jason Schwartzman, Danny Huston, Terence Stamp, Delaney Raye, Madeleine Arthur.

Pôster/capa/cartaz nacional de GRANDES OLHOS (Big Eyes)
Como tem sido dito aos quatro ventos, Grandes Olhos é um filme atípico na carreira de Tim Burton: a narrativa não possui elementos fantásticos, a dimensão da produção é reduzida (assim como o orçamento), o elenco não tem Johnny Depp nem Helena Bonham Carter e a repercussão do lançamento tem sido, no geral, tímida. E se por um acaso tudo isso pudesse ser explicado pelo fato de que, na realidade, o comando da produção não ficou a cargo de Burton? E se, em vez disso, o filme tiver sido dirigido por sua então esposa, Helena Bonham Carter, que aceitou ter ser nome dissociado da função, ainda pouco assumida por mulheres, para que a produção, a distribuição e a divulgação do filme não fossem comprometidas e, com isso, o discurso feminista da trama pudesse alcançar um número maior de pessoas? E se, ainda, a disputa posterior pelos créditos tiver sido uma das razões da recente separação do casal?

Considerando os tempos em que vivemos, aquilo que sabemos (ou acreditamos saber) sobre os envolvidos e a natureza do projeto, as suposições do parágrafo anterior são, no mínimo, absurdas - mas basta alguns pequenos ajustes nessa teoria conspiratória ridícula para cairmos justamente na história real que serviu de premissa para o filme. Escrito por Scott Alexander e Larry Karaszewski, Grandes Olhos destaca logo em seus primeiros minutos que "a vida nos anos 50 era muito boa, desde que você fosse um homem" e nos apresenta à protagonista em uma situação que faz jus à afirmação: fugindo às pressas com a jovem filha de um lar aparentemente sufocante e abusivo. Incapaz de se sustentar às custas de sua própria arte e enfrentando dificuldades para se inserir no mercado de trabalho como mulher e mãe solteira, Margaret (Amy Adams) se vê interessada pelo charmoso e também pintor Walter Keane (Christoph Waltz), com quem acaba casando apressadamente para derrubar as acusações do ex-marido sobre sua capacidade como mãe e provedora. Quando algumas obras da mulher - marcadas pelos olhos sempre desproporcionalmente grandes e expressivos - despontam como vendáveis, Walter se vê compelido a assumir a autoria das peças para garantir o fechamento dos primeiros negócios - e o que começa como um mero incidente isolado acaba se tornando uma mentira descontrolada e fadada à catástrofe.

Mais que uma história real impressionante, Grandes Olhos é um conto sobre a discriminação e o rebaixamento sofridos por mulheres que, 50 anos mais tarde, continua ecoando retumbante do ponto de vista temático, considerando as violências que persistem nos dias atuais e os enormes avanços que ainda precisam ocorrer na matéria. Embora assumidamente ingênua, Margaret é uma mulher obstinada que, por amor à filha e medo, acaba permitindo que Walter ocupe um espaço cada vez maior na relação, tornando-se uma vítima imediata do machismo do marido e da sociedade em geral - como o filme deixa claro na angustiante passagem em que a mulher, sufocada e perdida, busca conforto no confessionário de uma igreja e acaba encontrando mais distorções no discurso conservador do padre, que coloca a tradicional estrutura patriarcal da família acima das liberdades da personagem.

Amy Adams em GRANDES OLHOS (Big Eyes)

Amy Adams (Encantada), como de costume, faz um excelente trabalho ao exprimir tanto a prostração de uma mulher que parece passar anos confinada em estúdio sufocante, afastada até mesmo do convívio com a própria filha enquanto produz o trampolim social de Walter, quanto a força que a personagem reúne posteriormente para tomar as ações necessárias para expor a verdade e enterrar os anos de mentiras engolidas e manipulações emocionais sofridas. Por outro lado, Christoph Waltz (Django Livre) volta a demonstrar uma tendência à repetição no que diz respeito à composição de personagens, encarnando Walter como um sujeito mesquinho e egocêntrico que se assemelha a vários dos antagonistas que o ator vem assumindo desde que foi apresentado ao grande público, embora o personagem em si seja, de modo geral, bem escrito - com exceção, por exemplo, da cena embaraçosa do tribunal em que Walter assume a própria defesa e interroga ele mesmo como testemunha, quando o filme se alonga além do necessário e abraça um tom e uma abordagem mais adequados a uma sitcom.

Aliás, Burton, cujo último (e único) trabalho inspirado em uma história real (Ed Wood) já completa duas décadas, parece incapaz de conferir à narrativa um caráter homogeneamente realista e contido - e se por um lado a passagem em que Margaret é assombrada por olhos grandes no supermercado até se justifica razoavelmente bem, a cena em que Walter tenta aterrorizar a esposa e a enteada através do buraco de uma fechadura ou o plano em que um olho por pouco não é atingido por um garfo servem, basicamente, como lembretes imediatos e dispensáveis das preferências estilísticas do homem por trás da câmera.

Discutindo ainda com certa competência a natureza da arte sob diversos aspectos (o aquecido comércio de cópias em pôsteres das obras originais e as explicações inventadas por Walter sobre seu "processo criativo" são algumas das fagulhas mais óbvias), Grandes Olhos é um filme que, narrativamente, não chama muita atenção - o que não pode ser dito, entretanto, da decisão de Tim Burton de romper paradigmas da própria carreira e dar espaço (não através de um discurso fechado, direto, óbvio e aborrecido, mas de uma história emblemática e ilustrativa) a um tema importante, temido pelos conservadores e ainda pouco debatido pela indústria como é o feminismo.

Amy Adams em GRANDES OLHOS (Big Eyes)

De volta, de novo

Não há razão para florear sobre a questão ou aborrecer o caro leitor com explicações irrelevantes: após quase um ano e meio de inatividade (por aqui, já que estive razoavelmente ativo como colaborador no Cinema de Buteco e no Pipoca Combo), reativo este espaço para voltar a funcionar, em acordo com minhas ambições, como mero repositório do trabalho amador como crítico de Cinema que desenvolvo com algum empenho e certa paixão.

Sejam todos bem-vindos de volta!