24 de junho de 2015

Crítica | Minions

MINIONS

★★

Minions, EUA, 2015 | Duração: 1h31 | Lançado no Brasil em 25 de junho de 2015, nos cinemas | Escrito por Brian Lynch | Dirigido por Kyle Balda e Pierre Coffin | Com as vozes de Sandra Bullock, Jon Hamm, Michael Keaton, Allison Janney, Steve Coogan, Jennifer Saunders, Geoffrey Rush, Steve Carell e Pierre Coffin.

Pôster/capa/cartaz nacional de MINIONS
Sempre que tento entender o inexplicável e estrondoso sucesso do fraco Meu Malvado Favorito e de sua horrorosa continuação, lembro da ocasião em que estive presente em uma sessão de Dredd em que o teaser trailer em 3D do segundo filme foi exibido para uma plateia formada exclusivamente por adultos, cujas reações à peça de divulgação (que foi exaustivamente exibida ao longo de meses nos cinemas) chamaram muito minha atenção: primeiro, a incapacidade dos espectadores de esconder o deslumbramento infantil com a língua-de-sogra que parecia invadir a sala na direção das poltronas e, segundo, a explosão de gargalhadas (adultas, repito e enfatizo) que inundou o ambiente quando um dos minions esmurra e derruba um dos companheiros no desfecho da cena.

Trata-se de um fenômeno, no mínimo, curioso: alívios cômicos (ou sidekicks) por excelência, os seres amarelos unicelulares (?) dotados de um design pouquíssimo elegante e de um humor óbvio e rasteiro (que até funciona em várias ocasiões) caíram como um meteoro na graça do público e se tornaram a maior, senão única razão do sucesso da franquia - e não é à toa que, mesmo sendo personagens secundários, eles estão presentes de forma esmagadora em qualquer material relacionado aos filmes (cartazes, trailers, capa do DVD e do Blu-ray, brinquedos, etc) e nos principais argumentos utilizados pelos defensores das obras. Entretanto, já está mais do que provado que a bagunça inócua e lançadora-de-objetos-na-direção-da-plateia que caracteriza qualquer segmento audiovisual estrelado pelos minions não é capaz de sustentar ou sequer contribuir para uma construção narrativa satisfatória - o que, fatalmente, condena essa ascensão dos coadjuvantes engraçadinhos a protagonistas.

Escrito por Brian Lynch e dirigido por Kyle Balda e Pierre Coffin (este último responsável pelas vozes dos bichinhos), Minions introduz os personagens-título como seres fadados a servir mestres perversos e apresenta suas consecutivas e fracassadas tentativas de colaborar com grandes vilões ao longo da História. Derrotados e desiludidos, os pequeninos decidem se refugiar em uma gélida e remota caverna, onde se organizam em uma comunidade que rapidamente é afligida pelo abatimento oriundo do descumprimento de suas funções naturais. É então que três deles - o destemido líder Kevin, o músico e fã de bananas Stuart e o ingênuo Bob - decidem sair do esconderijo em busca de um vilão digno da servidão daquela tribo. Assim, o trio logo é cativado pela supervilã Scarlett Overkill (Sandra Bullock), que encomenda um grande roubo para testar as habilidades e a lealdade de seus novos capangas.

MINIONS

Apenas alguns tons menos histriônico que os dois Meu Malvado Favorito, este spin-off (ou prequel) volta os holofotes para o que havia de melhor e mais tolerável naqueles filmes sem qualquer propósito artístico ou ambição narrativa. Assim, a frágil trama é inteiramente estruturada como suporte para esquetes dos seres amarelos, que carecem de personalidades compatíveis com a centralidade dos papéis e cujo humor, predominantemente físico, flerta demasiadamente com o pastelão, saturando o espectador com tombos, sopapos e um bocado de histeria. Ainda nesse sentido, os realizadores pecam ao amontoar o filme com referências culturais que, abraçando a ambientação sessentista da trama, parecem apostar mais na vaidade dos espectadores capazes de identificá-las e compreendê-las do que na organicidade com que poderiam se encaixar na narrativa.

Por outro lado, o filme consegue arrancar uma ou outra risada quando explora aquilo que os minions possuem de melhor: a seriedade e o comprometimento nonsense com que assumem personalidades distintas ou se envolvem em atividades diversificadas, como ocorre em algumas passagens musicais, na hilária sequência em que Bob é coroado rei da Inglaterra ou na divertida montagem que exibe a jornada do restante da tribo rumo ao Reino Unido. Infelizmente, os realizadores são incapazes de identificar o potencial dessas investidas e desperdiçam a maior parte do tempo tentando conferir credibilidade à trama - que, por sinal, é repleta de arbitrariedades e inconsistências, característica marcante da franquia.

Preguiçoso a ponto de recorrer frequentemente à narração em off para que a trama seja compreendida (já que a língua própria dos minions mistura de forma imprevisível diversos idiomas humanos e fazer um trabalho genial como o de WALL•E é um desafio grande demais para os realizadores), Minions reflete a cada minuto o esforço inútil de uma equipe que, caso pudesse abandonar o pouco de dignidade que ainda lhe resta e atender às reais demandas do público, transformaria o longa em uma versão estendida da cena que surge após o fim dos créditos - uma bagunça musical, histérica, caótica e sem sentido, com toda a sorte de objetos voando na direção do público e os minions fazendo aquilo que sabem fazer de melhor: ser minions e alojar-se, sorrateiros, na mente dos consumidores. As empresas de brinquedos, guloseimas, material escolar, roupas de cama e as redes de fast food que ostentam os personagens em seus produtos e vitrines agradecem enfaticamente e mandam lembranças.

MINIONS

16 de junho de 2015

Crítica | Divertida Mente

DIVERTIDA MENTE (Inside Out)

★★★★★

Inside Out, EUA, 2015 | Duração: 1h34 | Lançado no Brasil em 18 de junho de 2015, nos cinemas | História de Pete Docter e Josh Cooley. Roteiro de Pete Docter & Meg LeFauve & Josh Cooley | Dirigido por Peter Docter e Ronaldo Del Carmen | Com as vozes de Amy Poehler, Phyllis Smith, Richard Kind, Bill Hader, Lewis Black, Mindy Kaling, Kaitlyn Dias, Diane Lane, Kyle MacLachlan e John Ratzenberger.

Pôster/capa/cartaz nacional de DIVERTIDA MENTE (Inside Out)
"Este filme é dedicado às nossas crianças. Por favor, não cresçam. Nunca.". Posicionada em algum ponto próximo à tradicional lista de production babies - bebês de envolvidos no projeto que nasceram durante a produção - nos créditos finais de Divertida Mente, esta dedicatória atravessou meus olhos ainda marejados ao final da sessão para se estabelecer como o golpe final da sucessão de bordoadas emocionais deferidas pela mais nova animação dos estúdios Pixar, que se aventura em um estudo inusitado sobre o processo de amadurecimento com doses equilibradas de humor, doçura e melancolia.

Escrito por Josh Cooley, Meg LeFauve e pelo diretor Pete Docter, o filme nos transporta para o interior da mente da jovem Riley (Kaitlyn Dias), onde as emoções Alegria (Amy Poehler), Tristeza (Phyllis Smith), Raiva (Lewis Black), Medo (Bill Hader) e Nojinho (Mindy Kaling) dividem o comando de uma central de operações responsável pelos estímulos e pela criação e armazenamento de memórias da garota. Porém, quando a família de Riley muda de cidade e a menina é exposta a uma série de ambientes e situações inéditos e desafiadores, Alegria e Tristeza são acidentalmente extraídas e afastadas da Sala de Comando e passam a enfrentar uma série de dificuldades para retornar, deixando a jovem sob os cuidados do Raiva, do Medo e da Nojinho.

Abraçando com vigor e sem receios a hipótese mais infantil e fantasiosa sobre o funcionamento do corpo humano - a de que pessoinhas desempenham tarefas específicas dentro de nós -, Divertida Mente lança um olhar lúdico e imaginativo sobre os mecanismos mentais de um indivíduo sujeito a um intenso processo de transformação, em um momento revelador e emblemático da vida. Nesse sentido, a produção acerta ao abraçar a complexidade da mente humana e abrir mão de um rigor lógico na concepção do universo psicológico: essencialmente, todas as leis em vigor naquele cenário são repletas de arbitrariedades - o que não impede, entretanto, que gerem fascinação e possuam alguma coerência própria. Assim, mesmo que as ilhas de personalidade criadas a partir de memórias-base não apresentem qualquer função prática, por exemplo, é impossível não se encantar com a forma como todos os elementos da trama mental refletem a montanha russa emocional que Riley embarca nos primeiros dias de sua nova vida: o desmoronamento da Terra da Bobeira, por exemplo, é um evento que deve despertar a identificação de boa parte dos espectadores, especialmente os mais grandinhos.

DIVERTIDA MENTE (Inside Out)

E é justamente aí que reside a grande beleza de Divertida Mente, cuja ambição resgata o brilhantismo que se tornou marca registrada da Pixar, mas não era visto desde Toy Story 3, de 2010. Com sensibilidade ímpar, o filme mostra como crescer e amadurecer é um processo tortuoso, desafiador, repleto de obstáculos, incertezas e perdas, que surpreende o indivíduo com rasteiras inesperadas e demanda que novas ferramentas sejam criadas para o enfrentamento de cada desafio extra apresentado pela vida. Além disso, o longa também merece nota por levantar a hipótese de que acolher emoções tidas como negativas, como a Tristeza, pode ser não só uma experiência catártica, mas também combustível para eventuais emoções positivas - uma ousadia admirável para um filme supostamente voltado para as superprotegidas crianças do século XXI. Como se não bastasse, Divertida Mente vai além e extrai alguns dos melhores frutos de sua premissa ao sugerir que o acervo de memórias-base (tidas como definidoras de personalidade) de um indivíduo pode, eventualmente, contar com uma parcela de recordações tristes - ou, ainda, de memórias agridoces, marcadas por emoções mistas, complexas, sem que tudo isso comprometa irremediavelmente a estabilidade emocional de uma pessoa.

E a eficiência com que Divertida Mente trabalha seus temas (incluindo aí, também, a excepcional cena em que damos uma bisbilhotada reveladora nas mentes dos pais de Riley durante um jantar) é tamanha que, mesmo apresentando um universo rico e prolífero, a produção não deixa a impressão de que grandes oportunidades foram desperdiçadas. Muito pelo contrário: com muitíssimo bom humor, o filme faz graça com situações corriqueiras (como sentir o cérebro congelar com alguma bebida ou ficar com uma música presa na cabeça), além de utilizar com extrema habilidade elementos previamente introduzidos sem maior alarde para tocar ou solucionar conflitos. Como não poderia deixar de ser, os aspectos técnicos da produção correspondem às altas expectativas no que diz respeito à qualidade e à riqueza de detalhes, embora o design da maioria dos personagens e de alguns cenários não esteja entre os mais memoráveis da Pixar.

Homenageando o Cinema ao atribuir à Fábrica de Sonhos (rótulo comumente atribuído à sétima arte) da mente de Riley uma fachada hollywoodiana clássica inconfundível, Divertida Mente é uma produção cuja imensidão do triunfo narrativo está diretamente vinculada à acessibilidade de seus temas e à sensibilidade com que são trabalhados. Afinal, que atire a primeira pedra aquele que nunca permitiu se afetar pelas dores implacáveis e recompensas revigorantes desse fantasma chamado amadurecimento.

DIVERTIDA MENTE (Inside Out)

1 de abril de 2015

Crítica | Velozes e Furiosos 7

VELOZES E FURIOSOS 7 (Furious 7)

★★

Furious 7, EUA, 2015 | Duração: 2h17m46s | Lançado no Brasil em 2 de abril de 2015, nos cinemas | Baseado nos personagens de Gary Scott Thompson. Escrito por Chris Morgan | Dirigido por James Wan | Com Vin Diesel, Paul Walker, Michelle Rodriguez, Jason Statham, Tyrese Gibson, Chris 'Ludacris' Bridges, Jordana Brewster, Dwayne Johnson, Kurt Russell, Lucas Black, Nathalie Emmanuel, Djimon Hounsou, John Brotherton, Elsa Pataky, Tony Jaa e Ronda Rousey.

Pôster/capa/cartaz nacional e crítica de VELOZES E FURIOSOS 7 (Furious 7)Até Velozes & Furiosos 6, a longevidade da franquia de ação iniciada em 2001 soava como um fenômeno, no mínimo, interessante: após tropeçar feio do segundo ao quarto exemplar, a série ganhou um surpreendente novo fôlego a partir de Velozes & Furiosos 5: Operação Rio, quando passou a conquistar seus melhores resultados de bilheteria e crítica. Entretanto, com o lançamento deste sétimo longa, a sobrevida da franquia passou a me preocupar seriamente: a falta latente de originalidade e a sucessão de erros cometidos pela produção surgem como razões mais que suficientes para encerrar os trabalhos por aqui, evitando que a situação piore ainda mais.

Escrito novamente por Chris Morgan (que assumiu a função pela primeira vez derrapando em Desafio em Tóquio), Velozes e Furiosos 7 segue o gancho deixado pelo desfecho do último filme e traz Jason Statham no papel de Deckard Shaw, um criminoso implacável que embarca em uma missão de vingança após a equipe liderada por Dominic Toretto (Vin Diesel) enviar seu irmão, o vilão da trama anterior (vivido por Luke Evans), para um leito hospitalar, repleto de fraturas e contusões. Após breves e irresolutos encontros entre mocinhos e vilão, Dom é convidado por um agente do governo (Kurt Russell) a assumir a missão de resgate da hacker Ramsey (Nathalie Emmanuel), que se encontra sob domínio do terrorista Jakande (Djimon Hounsou) - e, em troca, Toretto teria acesso ao Olho de Deus, uma aparelhagem altamente sofisticada (e clichê) que, invadindo qualquer dispositivo eletrônico do mundo que contenha câmera ou microfone, é capaz de rastrear e apontar a localização de Shaw (ou de qualquer outro indivíduo do planeta) em questão de minutos.

Estreando na franquia após quatro trabalhos consecutivos do taiwanês Justin Lin, o malaio James Wan se revela uma escolha estranha e, de certa forma, equivocada para a direção: reconhecido por seu trabalho em filmes de terror (de Jogos Mortais ao cultuado Invocação do Mal), o cineasta lança mão de algumas afetações pouco eficientes e demonstra certa falta de jeito com o novo gênero. Assim, Wan já inicia seu trabalho tentando inserir o filme na embalagem da franquia à força, inundando a tela com mulheres provocantes, gasolina e testosterona gratuitas e apostando em ineficazes aceleradas na imagem que remetem às menos louváveis produções estreladas por Jason Statham, comprometendo a eficácia de uma cena com inegável potencial. Além disso, em várias ocasiões, as corridas, perseguições e lutas parecem bem mais confusas e incompreensíveis do que o ideal, ao passo que pouquíssimos planos ou trechos das sequências de ação se destacam, chamam mais atenção ou causam maior impacto, o que é uma pena.

Ainda nesse sentido, o trabalho de Wan também é comprometido por efeitos especiais surpreendentemente irregulares: repare, por exemplo, como os carros que despencam de um avião são muitíssimo mais realistas do que aquele absurdamente artificial que atravessa o vão entre prédios em Abu Dhabi, e como isso afeta diretamente o resultado das respectivas passagens. Porém, a pior decisão técnica de Velozes e Furiosos 7 é, sem a menor sombra de dúvida, a conversão do filme para 3D: exibindo uma série de inconsistências físicas já nos primeiros segundos de projeção (rack focuses, árvores e miragens do asfalto são completamente negligenciados pela conversão), o uso da fajuta tecnologia tridimensional destrói tanto o visual do filme quanto a experiência do público - e até mesmo a opção de Wan de girar a câmera acompanhando cambalhotas ou outras estripulias dos personagens em determinadas ocasiões é capaz de aproximar o espectador da ação com mais eficiência do que a horrorosa tridimensionalidade.

Dwayne Johnson e Jason Statham em VELOZES E FURIOSOS 7 (Furious 7)

Mas, evidentemente, não é só em questões técnicas que Velozes e Furiosos 7 decepciona: o roteiro, que se leva muitíssimo mais a sério do que deveria, é consideravelmente estúpido e em incontáveis ocasiões se coloca acima do bom senso e da inteligência do espectador. Além de requentar elementos prévios (praticamente todos os dramas de todos os personagens) e repetir fórmulas (depois de lutar contra Gina Carano no filme anterior, Michelle Rodriguez agora enfrenta outra lutadora de MMA, Ronda Rousey), o filme é sensivelmente prejudicado pela forma arbitrária como Morgan e Wan lidam com os riscos a que os personagens são expostos, anulando as cotas de fatalidade de acidentes altamente destruidores e violentos (como uma batida frontal proposital em alta velocidade) ao mesmo tempo em que transforma determinada colisão substancialmente mais simples (para os padrões vigentes) em uma situação absurdamente dramática para o motorista envolvido - e confesso que, ciente da necessidade de reajustes na trama criada pelo falecimento do ator Paul Walker durante as filmagens, as únicas cenas que me causaram algum tipo de tensão foram aquelas envolvendo Brian, já que a morte do personagem rondava minha mente como uma solução possível para a provável defasagem nas filmagens.

O que nos leva, naturalmente, à homenagem que a produção oferece a Walker - e encerre a leitura por aqui caso revelações desta natureza lhe desagradem. Ao que tudo indica, o conflito de Brian como pai de uma família ameaçada de morte já fazia parte do roteiro desde o princípio; entretanto, o esforço de intensificar este drama do sujeito fica muitíssimo evidente na trilha sonora de Brian Tyler, que surge demasiadamente melosa e melancólica em todas as cenas envolvendo esta faceta do personagem. Dessa forma, o filme parece bastante disposto a integrar o trágico e precoce fim da trajetória do ator à narrativa, por mais desajeitada e inapropriada que a tentativa pareça ou se revele - o que é confirmado pelo desfecho do filme, que escancara essa intenção em uma sequência tão tocante quanto apelativa, milimetricamente arquitetada para conduzir os espectadores ao choro (dentre os quais, confesso, me incluo) e com direito à única (ou mais explícita) e ligeiramente grotesca inserção digital do rosto do ator no corpo de um dublê.

Frustrando o público com um vilão caricato construído em torno do mesmíssimo tipo implacável e presunçoso que Jason Statham já encarnou incontáveis vezes em sua carreira, Velozes e Furiosos 7 é uma produção que busca incessantemente o humor com sucesso meramente ocasional (a cena absurda e hilária em que determinado personagem decide por conta própria encerrar o tratamento de um fratura e rompe o gesso que encobria seu braço é, talvez, o ponto alto da projeção nesse sentido) e, sobretudo, comprova que a fonte de inspiração da franquia parece irremediavelmente comprometida, qualquer que tenha sido o potencial contido na equipe ou no universo que forneceu gás para que a série caminhasse até aqui. Talvez esteja mesmo na hora de fazer jus à promessa que, de um modo ou de outro, vários dos filmes fizeram e nenhum ainda cumpriu: a de aposentar de vez esta possante máquina de fazer dinheiro.

Paul Walker em VELOZES E FURIOSOS 7 (Furious 7)

31 de março de 2015

O Ano Mais Violento

Jessica Chastain e Oscar Isaac em O ANO MAIS VIOLENTO (A Most Violent Year)

Diferentemente da expressiva maioria dos personagens semelhantes, Abel Morales (Oscar Isaac) é um empresário ambicioso que toca uma bem sucedida companhia petroleira seguindo preceitos éticos e um código moral bastante razoáveis. Entretanto, a expansão do negócio com a compra de um terreno com localização estratégica coincide com uma onda de crimes e violência que afeta diretamente a transação - afinal, a narrativa é ambientada na Nova York de 1981, tido como um dos anos mais violentos da história da cidade.

Escrito e dirigido por J.C. Chandor, o filme acompanha o personagem de Oscar Isaac tentando oficializar a compra da tal propriedade enquanto sua empresa é auditorada sob suspeita de atividades ilegais, o que faz com que o banco recue em relação a um importante empréstimo e obriga o protagonista a se desdobrar para levantar a polpuda quantia de dinheiro necessária para concluir a compra - e, como se não bastasse, a saúde financeira da Standard Heating Oil ainda está sendo ameaçada por sucessivos roubos de caminhões-tanque. Nessas circunstâncias, O Ano Mais Violento se propõe a estudar como iniciativas criminosas infectam a atividade de grandes corporações e, naturalmente, comprometem os esforços daqueles que se empenham em conduzir os negócios pelas vias legais. Mais que isso, o filme expõe como a integridade do protagonista é sistematicamente ameaçada por suas ambições comerciais - e é emblemática a cena em que o homem, embora não induza uma tragédia cujas consequências fariam bem aos negócios, tampouco se esforça para impedir que ela ocorra, além de providenciar com prontidão e frieza uma solução para um efeito colateral do incidente.

Desenvolvendo a trama de forma muitas vezes demasiadamente lenta, Chandor cria rimas visuais que não agregam muito à produção (como a repetição de um movimento de câmera que acompanha o protagonista e um de seus funcionários correndo em momentos distintos da projeção) e, com exceção de pequenos sustos que exprimem a natureza abrupta, aleatória ou impactante de determinados acontecimentos, rompe a monotonia de forma mais incisiva apenas em uma ocasião, na sequência de perseguição cujos méritos são suficientes para que ela funcione bem mesmo com sua curta duração.

Conferindo à esposa de Abel uma importância bem menor do que a superexposição de Jessica Chastain no material de divulgação parecia apontar, O Ano Mais Violento é um filme que, embora ambicioso e esforçado, sofre com um roteiro ligeiramente redundante: a certa altura, acompanhar os esforços do protagonista para contornar demanda um enorme investimento de tempo, paciência e atenção do espectador e pouco alimenta ou diversifica a reflexão temática proposta pelo cineasta. Nada, entretanto, que condene efetivamente a eficiência deste interessante thriller dramático.

★★★

A Most Violent Year, EUA/Emirados Árabes Unidos, 2014 | Duração: 2h04m29s | Lançado no Brasil em 2 de abril de 2015, nos cinemas | Roteiro de J.C. Chandor | Dirigido por J.C. Chandor | Com Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Albert Brooks, Elyes Gabel e Alessandro Nivola.

Oscar Isaac e David Oyelowo em O ANO MAIS VIOLENTO (A Most Violent Year)

25 de março de 2015

Crítica | O Garoto da Casa ao Lado

Ryan Guzman e Jennifer Lopez em O GAROTO DA CASA AO LADO (The Boy Next Door)


The Boy Next Door, EUA, 2015 | Duração: 1h30m35s | Lançado no Brasil em 26 de março de 2015, nos cinemas | Roteiro de Barbara Curry | Dirigido por Rob Cohen | Com Jennifer Lopez, Ryan Guzman, Ian Nelson, John Corbett, Kristin Chenoweth, Lexi Atkins, Hill Harper e Jack Wallace.

Pôster/capa/cartaz nacional de O GAROTO DA CASA AO LADO (The Boy Next Door)
Mesmo estando constantemente imerso no universo cinematográfico, sempre tento assistir a filmes inéditos sabendo o mínimo possível sobre eles - algo que diminui consideravelmente minhas expectativas a respeito da obra, quaisquer que elas sejam. Por isso, fujo de spoilers como o diabo da cruz e, sempre que possível, evito ver trailers, ler notícias ou tomar conhecimento de quaisquer outras informações que revelem demais sobre a produção em questão. Com O Garoto da Casa ao Lado não foi diferente: juntando o título sugestivo e a divulgação do filme como suspense, fui ao cinema sabendo mais ou menos o que me aguardava, mas absolutamente incerto sobre a forma como meus palpites se concretizariam - e nem mesmo as surpresas proporcionadas por este meu desconhecimento foram suficientes para tornar a experiência minimamente gratificante.

Escrito pela estreante Barbara Curry, o filme é centrado na professora de Literatura e mãe de família Claire Peterson (Jennifer Lopez), pouco tempo após esta se separar do marido Garrett (John Corbett) em decorrência de uma crise no relacionamento. Nesse contexto, o enfermo vizinho da família (Jack Wallace) passa a ser cuidado pelo neto, Noah Sandborn (Ryan Guzman), um jovem gentil, charmoso e atraente que rapidamente conquista a simpatia dos Peterson. Entretanto, depois que Noah seduz Claire e passa uma noite com ela, o rapaz passa a persegui-la e assediá-la de forma agressiva e obsessiva, transformando a vida da professora em um verdadeiro inferno.

Dirigido por Rob Cohen, O Garoto da Casa ao Lado é um thriller que, fundamentado em um caso de stalking, segue à risca a cartilha do gênero: acuada, constrangida e arrependida, a personagem de Jennifer Lopez permanece em constante aflição enquanto é chantageada pelo jovem vivido por Ryan Guzman, cujas intenções são fracas e mal fundamentadas - isso sem mencionar, é claro, que as estratégias do rapaz não são particularmente coerentes com seus supostos objetivos, o que não impede que vários de seus planos funcionem estranha e excepcionalmente bem (como virar o filho de Claire contra o próprio pai). Como se não bastasse, o filme se abstém de qualquer traço de originalidade ou personalidade própria em seu terceiro ato, quando conduz a narrativa a um cenário patético de tão clichê e lança seus personagens na mesmíssima cadeia de eventos que dezenas de filmes semelhantes já utilizaram anteriormente.

Jennifer Lopez e Ryan Guzman em O GAROTO DA CASA AO LADO (The Boy Next Door)

Para piorar, mesmo tendo sido escrito por uma mulher e protagonizado por outra, o filme é incapaz de trabalhar ou incitar reflexões sobre a forma abusiva como indivíduos do sexo feminino são constantemente tratados pela sociedade, já que a psicopatia de Noah é tão grande e chamativa que praticamente ofusca sua misoginia - e embora o roteiro pareça disposto a tocar em questões feministas ao trazer Claire confrontando um idiota machista durante um jantar, a ilusão é desfeita quando a mulher subitamente admite procurá-lo novamente e conceder-lhe uma nova chance, o que enfraquece a personagem e relativiza o discurso misógino manifestado pelo sujeito.

Com um elenco de segunda linha liderado pelos esforçados Jennifer Lopez - que continua computando mais erros do que acertos em sua carreira como atriz - e Ryan Guzman - um belíssimo pedaço de carne que até não se sai muito mal, apesar das intermináveis sabotagens do roteiro -, O Garoto da Casa ao Lado é um filme cuja falta de vergonha na cara é sancionada categoricamente com a inclusão do mais irritante dos clichês do gênero: o susto que ocorre quando um gato subitamente atravessa o caminho de algum personagem - a indigesta cereja de um bolo cujo azedamento parecia demasiadamente anunciado já em sua lista de ingredientes.

Ryan Guzman em O GAROTO DA CASA AO LADO (The Boy Next Door)

23 de março de 2015

Crítica | Cinderela

Lily James em CINDERELA (Cinderella)

★★★★

Cinderella, EUA, 2015 | Duração: 1h45 | Lançado no Brasil em 26 de março de 2015, nos cinemas | Roteiro de Chris Weitz | Dirigido por Kenneth Branagh | Com Lily James, Cate Blanchett, Richard Madden, Helena Bonham Carter, Sophie McShera, Holliday Grainger, Derek Jacobi, Stellan Skarsgård, Nonso Anoize, Rob Brydon, Ben Chaplin e Hayley Atwell.

Pôster/capa/cartaz nacional de CINDERELA (Cinderella)
O enredo de Cinderela certamente está entre os mais conhecidos e populares do mundo. Com séculos de existência e origem incerta, o conto da gata borralheira ainda é reconhecido pelo trabalho em torno de arquétipos e talvez sobreviva até os dias atuais por contar com uma narrativa suficientemente bem resolvida, independente dos pormenores que separam suas diferentes versões e releituras. Essa característica, aliás, é um dos principais fatores responsáveis pelo sucesso desta nova versão produzida pelos estúdios Disney: a abordagem particular do roteirista Chris Weitz, colocada em prática pelo cineasta Kenneth Branagh, não comete o erro de meramente remontar adaptações anteriores e é bastante coerente com o tipo de linguagem e sofisticação narrativa com que o público atual de Cinema está habituado.

Acompanhando a protagonista desde a infância, o filme dedica tempo e atenção consideráveis a todas as etapas do processo que transformaram a criança alegre de outrora em uma jovem órfã explorada pela madrasta abusiva (Cate Blanchett) e pelas invejosas irmãs postiças, Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger). Assim, mesmo que a maioria de nós já saiba o que as novas integrantes da família representarão para a trajetória de Ella (Lily James), Weitz e Branagh introduzem o trio de mulheres como figuras apenas incômodas e suspeitas em um primeiro momento para, gradualmente, expor suas verdadeiras intenções e naturezas - e a quebra de expectativa durante certos diálogos estrelados pela madrasta (como aqueles referentes a uma troca de quartos ou à morte do pai de Ella), ocasiões em que somos inicialmente ludibriados com falsas insinuações sobre uma suposta benevolência da antagonista, é perfeita nesse sentido. Para completar, essa construção desapressada e gradativa faz com que a dinâmica de trabalhos forçados a que a protagonista é submetida soe não como uma situação exatamente premeditada, mas como uma consequência natural das circunstâncias daquele contexto e das personalidades dos indivíduos envolvidos.

Cate Blanchett, como não poderia deixar de ser, faz um trabalho preciso e eficiente como a mulher cruel e desprezível que a madrasta aos poucos se revela, entregando-se a excessos em ocasiões extremamente pontuais e toleráveis. Já Richard Madden (o Robb Stark de Game of Thrones) transforma o príncipe Kit em um sujeito adequadamente bravo, vistoso e generoso, ao passo que Helena Bonham Carter claramente se diverte em sua breve participação na pele da entusiasmada e estabanada fada madrinha, que viabiliza a ida de Cinderela ao grande baile em que o príncipe deverá escolher uma felizarda para desposar e se tornar a mais nova princesa do reino. Por fim, a pouco conhecida Lily James surge como um grande acerto do elenco ao transformar Ella em uma garota que, assim como a também princesa Giselle de Encantada ou a protagonista da série Unbreakable Kimmy Schmidt, exibe um positivismo aparentemente difícil de abalar, esquivando-se com admirável facilidade e humildade de pensamentos e sentimentos negativos, mesmo quando estes surgem de forma intensa ou em momentos críticos.

Lily James em CINDERELA (Cinderella)

Sem abrir mão da dose esperada e necessária de referências à animação clássica de 1950, Chris Weitz toma algumas liberdades e promove pequenas mudanças que, sem descaracterizar o conto original, tornam a cadeia de eventos da narrativa mais coesa e bem amarrada. Além disso, o roteirista não se intimida em incluir eventos mais carregados do ponto de vista dramático - uma pequena ousadia, para uma produção voltada para o público infantil, que Kenneth Branagh, cineasta shakespeariano por formação, abraça sem receios, permitindo que os personagens atravessem suas aflições particulares com a intensidade adequada a cada caso.

Tecnicamente, Cinderela é irrepreensível e digno de aplausos: os efeitos especiais são muitíssimo eficientes na maioria das ocasiões, especialmente aqueles usados na concepção do vilarejo ou das demais paisagens majestosas em que a história é ambientada. Entretanto, ainda que o design de produção seja de encher os olhos, o que chama a atenção de fato são os figurinos de Sandy Powell: da sobriedade sofisticada dos trajes da madrasta ao estonteante vestido de baile azul de Cinderela (reparem a leveza quase etérea do caimento, especialmente quando a personagem surge correndo), as peças exibem um visual ao mesmo tempo elegante, vibrante e burlesco, bastante coerente com a atmosfera da produção.

Antecedido no cinema por um curta moderadamente divertido e absolutamente despretensioso estrelado pelos personagens do megassucesso Frozen - Uma Aventura Congelante, Cinderela é uma adaptação admirável e encantadora cuja produção se justifica pela abordagem ligeiramente mais madura e adulta, que, além de muitíssimo bem realizada, não sacrifica o caráter fabulesco intrínseco ao material original, propondo-se a agradar públicos com as mais diversas exigências.

Richard Madden em CINDERELA (Cinderella)

18 de março de 2015

O Duelo

José Wilker, Pietro Mario, Joaquim de Almeida, Zeca Cenovicz e Munir Kanaan em O DUELO

Não estou familiarizado com a obra "Os Velhos Marinheiros", de Jorge Amado, e, portanto, não sei afirmar se o romance é ou não respeitável do ponto de vista literário - mas não duvido nada que seja. Como produção cinematográfica, entretanto, posso dizer que a narrativa de Amado, adaptada pelo cineasta Marcos Jorge, não funciona muito bem, dando origem a um longa arrastado, desinteressante e estruturalmente problemático.

Ambientada na cidadezinha balneária Periperi, a história acompanha a chegada do capitão-de-longo-curso aposentado Vasco Moscoso de Aragão (Joaquim de Almeida) no local e mostra como a população da vila rapidamente se encanta com o charme do Comandante e de suas histórias, repletas de aventura e romance. Isso, naturalmente, desperta a inveja raivosa do fiscal aposentado Chico Pacheco (José Wilker), cidadão mais admirado da comunidade até então, que passa a desempenhar um enorme esforço para desmascarar o Comandante, tido por ele como um impostor de marca maior. Entretanto, a questão parece prestes a ser resolvida quando o capitão de uma embarcação nas redondezas morre em serviço e Vasco é convocado para conduzi-la até seu último porto.

Fundamentada em um mistério que falha miseravelmente em despertar a curiosidade ou o interesse do público, O Duelo ainda investe em intermináveis e aborrecidos flashbacks, cujas informações nunca oferecem pistas que fortaleçam ou abalem a legitimidade dos fatos relatados e raramente desempenham alguma função paralela, como desenvolver seus personagens ou entreter o espectador. Como se não bastasse, a estrutura desajeitada da narrativa compromete gravemente o ritmo do longa: primeiro, ouvimos várias histórias aleatórias de Moscoso de Aragão em bloco; em seguida, Pacheco oferece de forma ininterrupta sua longa versão dos fatos; por último, Periperi e seus personagens são jogados para escanteio quando o Comandante, sozinho, parte em sua missão marítima, vindo a se envolver com novos personagens e a protagonizar subtramas inéditas e igualmente enfadonhas.

Com isso, não há muito que o elenco possa fazer: falecido há alguns meses, José Wilker (a quem o filme é dedicado) tenta em vão extrair humor das variações de "Comandante uma ova!" que Pacheco esbraveja em momentos variados da projeção, enquanto a normalmente eficiente Patrícia Pillar surge artificial no papel de uma mulher demasiadamente ingênua e com uma função indigna a desempenhar. E se Claudia Raia e Tainá Müller surgem como presenças até marcantes (embora suas personagens não o sejam), o português Joaquim de Almeida se esforça ao máximo para conferir credibilidade ao protagonista - e, dentro das falhas e limitações do projeto, é possível afirmar que ele até consegue.

Contando com efeitos especiais pra lá de medianos e uma trilha sonora invasiva e irritante, o terceiro longa de ficção de Marcos Jorge é uma obra que se aproxima mais do péssimo Corpos Celestes do que do intrigante Estômago - e fico na esperança de que o próximo projeto do cineasta divida mais características com sua promissora estreia.


O Duelo, Brasil/Portugal, 2015 | Baseado na obra "Os Velhos Marinheiros", de Jorge Amado. Escrito por Marcos Jorge | Dirigido por Marcos Jorge | Com Joaquim de Almeida, José Wilker, Patrícia Pillar, Claudia Raia, Marcio Garcia, Tainá Müller, Sandro Rocha, Milton Gonçalves, Munir Kanaan, Duda Ribeiro, Zeca Cenovicz, Pietro Mario, Maurício Gonçalves, Jarbas Homem de Mello e Anderson Müller.

10 de março de 2015

Crítica | O Sétimo Filho

Jeff Bridges e Ben Barnes em O SÉTIMO FILHO (Seventh Son)


Seventh Son, EUA/Reino Unido/Canadá/China, 2014 | Duração: 1h42m03s | Lançado no Brasil em 12 de março de 2015, nos cinemas | Inspirado no romance "The Spook's Apprentice", de Joseph Delaney. História de Matt Greenberg. Roteiro de Charles Leavitt e Steven Knight | Dirigido por Sergei Bedrov | Com Jeff Bridges, Ben Barnes, Alicia Vikander, Antje Traue, Olivia Williams, John DeSantis, Djimon Hounsou, Kit Harington e Julianne Moore.

Pôster/capa/cartaz nacional de O SÉTIMO FILHO (Seventh Son)
No discurso de agradecimento pelo prêmio de melhor atriz por seu trabalho em Para Sempre Alice durante a última cerimônia do Oscar, Julianne Moore afirmou que "Não existe isso de 'melhor atriz', como evidenciado pelas performances das demais indicadas". Destituída de qualquer hipocrisia ou falsa modéstia, Moore estava certíssima: atuações são extremamente subjetivas, a opinião dos votantes da Academia não é de forma alguma suprema e, como em qualquer eleição, os resultados dos Oscars são influenciados por uma série de fatores externos, como as dispendiosas campanha dos estúdios - sem contar que, naturalmente, o prêmio diz respeito a um trabalho específico, e não ao desempenho do artista ao longo daquela ano ou em toda sua carreira. Caso a premiação considerasse mais obras dos indicados, aliás, este O Sétimo Filho provavelmente demandaria que a estatueta de Moore fosse recolhida, já que seu trabalho aqui definitivamente não faz jus a seu talento.

A culpa, claro, não é só da atriz, por ter assinado o contrato e se envolvido com o projeto. Escrito por Matt Greenberg, Charles Leavitt e Steven Knight com inspiração no livro de Joseph Delaney ou em qualquer uma das incontáveis histórias de caça às bruxas que o Cinema e a Literatura já contaram, o filme traz Jeff Bridges na pele do Mestre John Gregory, um caça-feitiço que, após perder seu aprendiz Bradley (Kit Harington) para os encantos fatais da bruxa Mãe Malkin (Julianne Moore), visita a humilde família Ward e oferece uma quantia generosa por Tom (Ben Barnes), o sétimo filho de um sétimo filho. A poucos dias da Lua de Sangue cheia - fenômeno que ocorre uma vez a cada milênio e renova o poder da bruxarada -, Gregory vê seus esforços de derrotar a vilã e seus aliados comprometidos pela falta de habilidade do novo aprendiz - até descobrir uma herança genética que, claro, torna Tom único e especial, senão o único apto a abater a facção inimiga.

Calcado em elementos frágeis e tolos trabalhados de forma idem, O Sétimo Filho é uma produção derivativa e sem personalidade que não consegue escapar do fracasso nem mesmo com a ajuda dos nomes de peso do elenco: enquanto a já mencionada Julianne Moore é desperdiçada em um papel que não lhe oferece um desafio sequer, exigindo que a atriz simplesmente mantenha uma postura confiante, imponente e sedutora ao longo de toda a projeção, o veterano e premiado Jeff Brigdes parece meramente reciclar o despojamento e outros detalhes de sua composição para R.I.P.D. - Agentes do Além que, muito benéficos para aquela obra medíocre, aqui apenas conferem uma dose moderada de humor e credibilidade ao personagem - insuficiente, entretanto, para elevar a produção a um patamar respeitável. E embora surja vigoroso como o novo caso de typecasting favorito de Hollywood nas poucas cenas em que aparece, Kit "Jon Snow" Harington talvez chame tanta atenção quanto o bonitinho-mas-ordinário Ben Barnes, que não consegue conferir peso algum ao personagem-título e atravessa a narrativa sem causar qualquer tipo de impressão mais forte.

Julianne Moore em O SÉTIMO FILHO (Seventh Son)

Contando com efeitos especiais até eficientes, mas mais alegóricos do que qualquer outra coisa, O Sétimo Filho consegue ser genérico e derivativo até em seu design de produção: da decoração dos cenários aos figurinos, nada foge de tudo aquilo que o gênero já criou e recriou. Para piorar, a escuridão que domina a maior parte da narrativa torna o visual do filme ainda mais desinteressante, além de prejudicar ativamente o efeito 3D - que, mesmo nas cenas bem iluminadas, ainda é comprometido, mas dessa vez pelo uso frequente e inoportuno de soft focus, que "embaça" boa parte do quadro em várias ocasiões. E será que já mencionei que, como se tudo isso não bastasse, o 3D do filme ainda é convertido?

Mantido na geladeira por quase três anos (a fotografia principal do filme foi realizada no primeiro semestre de 2012), O Sétimo Filho até compensa subtramas aborrecidíssimas (como o estúpido romance entre Tom e uma jovem meio-bruxa) com uma ou outra sequência de ação aceitável, mas é incapaz de conceber até mesmo um clímax decente, enviando o espectador pra fora da sala de cinema frustrado e descompensado por várias razões diversas e imagináveis.

Ben Barnes em O SÉTIMO FILHO (Seventh Son)

4 de março de 2015

Crítica | 118 Dias

Gael García Bernal em 118 DIAS (Rosewater)

★★★

Rosewater, EUA, 2014 | Duração: 1h42m56s | Lançado no Brasil em 5 de março de 2015, nos cinemas | Baseado no livro de Maziar Bahari e Aimee Molloy. Roteiro de Jon Stewart | Dirigido por Jon Stewart | Com Gael García Bernal, Kim Bodnia, Dimitri Leonidas, Shohreh Aghdashloo, Haluk Bilginer, Claire Foy.

Pôster/capa/cartaz nacional de 118 DIAS (Rosewater)Há uma cena particular em 118 Dias que, além de extremamente poética em sua ironia, é riquíssima de significado: enquanto destroem dezenas de antenas parabólicas clandestinas, agentes iranianos têm todo o esforço de limitar a circulação de informações no país sabotado por um jovem que, com um mero telefone celular, registra toda a ação em vídeo - e bem sabemos que, caindo na rede mundial de computadores, uma filmagem com um cunho politico como este tem boas chances de repercutir (ou viralizar, como costumamos dizer por aqui), afetando em maior ou menor grau o curso da História.

Da mesma forma, é extremamente sintomático que, graças a um engano quase tragicômico, o jornalista canadense-iraniano Maziar Bahari tenha sido encarcerado por autoridades iranianas e opressivamente interrogado ao longo de quase quatro meses, período em que todas suas ações prévias como jornalista (ou mesmo como indivíduo) se tornaram indícios de espionagem na mente paranoica dos interrogadores. Escrito e dirigido por Jon Stewart com base em uma história real, o filme segue Bahari (Gael García Bernal) durante sua cobertura das eleições iranianas de 2009 para a Newsweek, publicação semanal para a qual o sujeito trabalhava na ocasião. Após testemunhar as controvérsias do processo eleitoral, entrar em contato com partidários de ambos os lados da disputa e participar de uma entrevista para a tevê americana com teor cômico, o homem é arbitrariamente preso por suspeita de espionagem e mantido por cento e dezoito dias em condições degradantes, sem nenhum contato com a família ou qualquer acesso ao mundo exterior.

Estreia apropriada do comediante e apresentador Jon Stewart como cineasta, 118 Dias é um projeto com óbvio cunho pessoal (a entrevista jocosa que Bahari cedeu a um repórter toscamente fantasiado de espião norte-americano foi exibida no The Daily Show) que, acima de tudo, discute a influência que a disseminação da informação exerce sob a ordem mundial. Mais que isso, a produção destaca especialmente a importância do uso correto de tudo o que é divulgado e reproduzido através dos mais diversos canais de comunicação: a prisão de Maziar, por exemplo, talvez jamais tivesse ocorrido caso seus encarceradores tivessem discernimento suficiente para interpretar uma cena televisiva cômica como tal. Além disso, o filme também enfatiza a importância da informação como arma política ao expor como a desinformação é utilizada por governos abusivos no processo de alienação de seu povo - o que fica claro nos esforços de abafar a revolta ativa da esposa de Bahari, que superam qualquer empenho de corrigir o erro cometido contra o protagonista.

Gael García Bernal em 118 DIAS (Rosewater)

O período em que Maziar permaneceu recluso, porém, não oferece matéria-prima muito promissora para o roteiro: quando não há interrogatórios ou outras situações que levem a narrativa adiante, o protagonista é obrigado até mesmo a ter conversas com entes falecidos para preencher tempo - um recurso bobo e ineficaz. Mesmo assim, o desempenho de Gael García Bernal em todo o filme é digno de nota: dinâmico quando livre e assustadiço quando aprisionado, o ator se porta como um homem comum exposto a uma situação atípica e hostil, temendo pela própria segurança, fazendo eventualmente leituras corretas sobre seu interrogador e usando isso a seu favor quando conveniente.

Jon Stewart, por outro lado, não se contenta em conduzir o longa de forma discreta e, em mais de uma ocasião, aposta em recursos que chamam a atenção mais para a execução do que pela finalidade das tais decisões, como a montagem em que tags e hashtags se misturam ao cenário de uma paisagem urbana - isso sem mencionar, é claro, o momento embaraçoso em que Stewart subestima a inteligência do espectador de forma ostensiva e se dá ao trabalho de explicar que as antenas parabólicas clandestinas são uma porta de entrada para conteúdo político vindo de vários cantos do planeta.

Entretanto, o razoável conjunto da obra e as bem articuladas questões políticas que o caracterizam são o bastante para que a esforçada e pouco divulgada estreia de Jon Stewart como cineasta mereça não passar de todo batida.

Gael García Bernal e Kim Bodnia em 118 DIAS (Rosewater)

3 de março de 2015

Crítica | Kingsman: Serviço Secreto

Colin Firth e Taron Egerton em KINGSMAN: SERVIÇO SECRETO (Kingsman: The Secret Service)

★★★★

Kingsman: The Secret Service, Reino Unido, 2014 | Duração: 2h08m35s | Lançado no Brasil em 5 de março de 2015, nos cinemas | Baseado nos quadrinhos de Mark Millar e Dave Gibbons. Roteiro de Jane Goldman & Matthew Vaughn | Dirigido por Matthew Vaughn | Com Colin Firth, Taron Egerton, Mark Strong, Samuel L. Jackson, Sofia Boutella, Sophie Cookson, Jack Davenport, Mark Hamill e Michael Caine.

Pôster/capa/cartaz nacional de KINGSMAN: SERVIÇO SECRETO (Kingsman: The Secret Service)
Grande parte do sucesso de Kingsman - Serviço Secreto reside na abordagem adotada pelo cineasta Matthew Vaughn: a rigor, o roteiro não apresenta uma trama de espionagem particularmente original ou inusitada, mas o modo irreverente como a narrativa é conduzida e desenvolvida, com doses equilibradas de violência e humor negro, é suficiente para contornar problemas dessa natureza e fazer do filme uma obra reverencial, divertida e empolgante.

Sexta parceria de Vaughn e Jane Goldman, o roteiro mostra ao público que, por trás da fachada inofensiva da alfaiataria britânica Kingsman, funciona uma sofisticada agência secreta que acaba de perder um de seus membros, Lancelot (Jack Davenport), literalmente partido ao meio durante uma missão. Honrando a memória de um antigo companheiro, também morto em combate anos antes, o agente Harry Hart (Colin Firth), de codinome Galahad, oferece ao filho do sujeito, Eggsy (Taron Egerton), a oportunidade de ingressar em um programa de treinamento da agência, organizado com o intuito de escolher um jovem talento para ocupar a vaga aberta na equipe. Entretanto, a atenção dos Kingsmen logo se divide entre a seleção do novo Lancelot e as manobras escusas do magnata americano Valentine (Samuel L. Jackson), cujo plano megalomaníaco põe em risco centenas de milhões de vidas ao redor do mundo.

Baseado nos quadrinhos de Mark Millar (cujo Kick-Ass ganhou as telonas também pelas mãos de Vaughn, com uma abordagem bastante semelhante à vista aqui) e Dave Gibbons (ilustrador do igualmente violento Watchmen), Kingsman é ambientado em um universo em que ternos sofisticados feitos sob medida são a vestimenta ideal para agentes secretos, geringonças dignas das primeiras encarnações James Bond (como guarda-chuvas multiusos, canetas com veneno de acionamento remoto e sapatos com lâminas retráteis embutidas) salvam o dia e Colin Firth possui o biotipo esperado de um espião implacável. Aliás, testemunhar o ator assumindo tal papel inusitado é uma das grandes graças do projeto: com uma postura que inspira confiança e elegância, Firth vive Galahad como um homem extremamente inteligente, habilidoso e bem treinado que, claro, usa sua aparência comum e insuspeita a seu favor - e é uma grata surpresa ver que o ator encarando uma considerável parcela de suas cenas de ação, conferindo maior credibilidade à transformação de Hart em uma máquina de matar nos momentos necessários.

Taron Egerton em KINGSMAN: SERVIÇO SECRETO (Kingsman: The Secret Service)

Nesse sentido, a decisão de não maquiar a maior parte da violência e o interessante trabalho de câmera de Vaughn contribuem para o resultado curioso das sequências de ação, cuja agitação peculiar intensifica os socos, pancadas e pontapés dos combatentes com surpreendente eficiência. Além disso, o cineasta toma a decisão arriscada (e, de certa forma, acertada) de abraçar o humor negro com o propósito de contornar as naturais questões morais que surgem e marcam determinadas passagens - e, mesmo assim, o confronto ambientado em uma igreja consegue a proeza de se estabelecer como uma das cenas mais perturbadoras do ano. Por fim, a condução firme e precisa de determinado salto de paraquedas ou da escapada de certa sala inundada apenas reforçam o talento do diretor.

Homenageando o gênero de espionagem através da reunião de elementos tradicionais com um olhar despretensioso que beira a sátira, Kingsman também conta com sua parcela de diálogos inspirados (a discussão em torno do significado da sigla JB, nome dado por Eggsy a seu cachorro, é um deles) e ainda ganha pontos graças à coragem de determinada quebra de expectativa e, principalmente, pela capacidade de impedir que o terceiro ato seja afetado por ela. Porém, nem todas as decisões de Vaughn e Goldman merecem a mesma carga de elogios: sim, as discussões metalinguísticas referentes aos clichês clássicos do gênero revelam-se apropriadas e relevantes para certo ponto de virada da narrativa, mas soam óbvias e até mesmo forçadas em outros contextos - o que, ainda assim, é absolutamente menos constrangedor do que a piada deslocada envolvendo sexo anal inserida nos arredores do desfecho. Além disso, os roteiristas desperdiçam tempo ao valorizar em demasia a dinâmica do grupo de jovens em treinamento, que inclui bullies imaturos e seus respectivos oprimidos - algo esperado de um filme colegial adolescente, e não de um grupo selecionado por agentes daquele calibre.

Apresentando ao grande público o simpático, carismático, belo e promissor Taron Egerton e trazendo Samuel L. Jackson claramente entretido com os detalhes da composição de seu vilão, caricato de um modo positivo e coerente com o projeto, Kingsman - Serviço Secreto é um passatempo de ponta que dá continuidade à sequência invicta de acertos da aclamada carreira de Matthew Vaughn.

Colin Firth em KINGSMAN: SERVIÇO SECRETO (Kingsman: The Secret Service)

2 de março de 2015

Crítica | Renascida do Inferno

Olivia Wilde em RENASCIDA DO INFERNO (The Lazarus Effect)

★★

The Lazarus Effect, EUA, 2015 | Duração: 1h23m21s | Lançado no Brasil em 5 de março de 2015, nos cinemas | Escrito por Luke Dawson e Jeremy Slater | Dirigido por David Gelb | Com Mark Duplass, Olivia Wilde, Donald Glover, Evan Peters e Sarah Bolger.

Pôster/capa/cartaz nacional de RENASCIDA DO INFERNO (The Lazarus Effect)
Se a segunda metade de Renascida do Inferno fosse tão bem resolvida quanto a primeira, provavelmente teríamos um terror digno de nota. Entretanto, após preparar o terreno com considerável eficácia, os roteiristas Luke Dawson (Imagens do Além) e Jeremy Slater (do ainda inédito reboot do Quarteto Fantástico) se entregam às mais batidas convenções que, infelizmente, desonram aqueles promissores quarenta minutos iniciais.

No filme, uma equipe de cientistas chefiada por Frank (Mark Duplass) conduz uma pesquisa em estado avançado em torno de um procedimento capaz de reverter a morte. Quando o soro Lázaro (nome com inspiração bíblica) finalmente traz de volta à vida uma cobaia canina, o estudo é desligado pelos financiadores, que dão uma limpa no laboratório e recolhem todos os arquivos e materiais desenvolvidos ao longo de anos pelo grupo. Indignados, os pesquisadores resgatam uma amostra de soro armazenada pessoalmente por um deles, invadem o laboratório na calada da noite e tentam reproduzir uma última vez o experimento - quando, então, a cientista Zoe (Olivia Wilde) acaba sendo eletrocutada e falecendo no local. Inconformado com a morte da amada e fora de si, Frank toma uma decisão extrema: ignorando o comportamento estranho do cachorro ressuscitado e as incontáveis questões éticas envolvidas, o homem aplica o soro e reproduz o procedimento na mulher, que retorna do mundo dos mortos incontestavelmente alterada.

Sintetizada dessa forma, a premissa de Renascida do Inferno até parece tosca e absurda, e de certa forma é; porém, o diretor David Gelb (do ótimo documentário O Sushi dos Sonhos de Jiro) e o elenco são hábeis em criar um cenário e uma ambientação que faz toda esta etapa da narrativa soar suficientemente plausível. Ainda nesse sentido, também vale destacar o desempenho do cão Cato, que confere à cobaia renascida Rocky uma expressão prostrada e enigmática absolutamente convincente e imprescindível para que os efeitos do soro Lázaro se tornem dignos de suspeita por parte dos personagens e do público. Além disso, embora coloque em pauta e confronte as questões éticas, empíricas e religiosas que rodeiam o experimento, o roteiro acerta ao sustentar uma teoria cientificamente fundamentada para o comportamento bizarro de Rocky, o que beneficia o suspense.

Evan Peters, Mark Duplass, Olivia Wilde, Donald Glover e Sarah Bolger em RENASCIDA DO INFERNO (The Lazarus Effect)

E é justamente ao desviar-se dessa linha que a metade final do longa se perde. Aparentemente incapazes de elaborar desdobramentos interessantes para a premissa, os roteiristas recorrem à cartilha de convenções e clichês do gênero e transformam a metade final da projeção em uma bagunça arbitrária e decepcionante: Zoe, por exemplo, logo se estabelece como a típica besta endiabrada e indomável com habilidades telecinéticas e telepáticas, que passa a perseguir os colegas unicamente por sua natureza diabólica e cuja derrota rapidamente se torna uma possibilidade remota.

Nestas circunstâncias, o elenco pouco pode contribuir: enquanto a esforçada Olivia Wilde acaba sujeita a ações que beiram o embaraço (como quando Zoe dá um de seus vexatórios e insossos berros demoníacos), o talentoso Mark Duplass, em uma rara escapada das dramédias mumblecore, exibe um desempenho satisfatório no papel do protagonista, mesmo sendo obrigado a assumir uma postura absurdamente contraditória a certa altura (o desprezo que o homem exibe mentalmente em determinado momento pela vida de Zoe é incompatível com seu intenso e recentíssimo esforço de trazê-la de volta).

Cumprindo a cota obrigatória de filmagens amadoras e de imagens registradas por câmeras de segurança (herança do subgênero found footage), Renascida do Inferno é um projeto cujo evidente potencial é massacrado pela aborrecida e convencional overdose de bobagens de uma reta final que aniquila praticamente tudo de bom que havia sido construído até então.

Sarah Bolger e Olivia Wilde em RENASCIDA DO INFERNO (The Lazarus Effect)

11 de fevereiro de 2015

Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

Jamie Dornan e Dakota Johnson em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)


Fifty Shades of Grey, EUA, 2015 | Duração: 2h05m11s | Lançado no Brasil em 12 de fevereiro de 2015, nos cinemas | Baseado no livro de E.L. James. Roteiro de Kelly Marcel | Dirigido por Sam Taylor-Johnson | Com Dakota Johnson, Jamie Dornan, Eloise Mumford, Victor Rasuk, Jennifer Ehle, Luke Grimes, Rita Ora e Marcia Gay Harden.

Pôster/capa/cartaz nacional de CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)
Poucas coisas nesse mundo são mais apropriadas e fazem mais sentido do que Cinquenta Tons de Cinza ter se originado como uma fanfic de Crepúsculo. Baseado no livro escrito por uma fã de Edward e Bella, esta adaptação cinematográfica apresenta ao público um romance monotônico que em várias ocasiões remete ao casal concebido por Stephenie Meyer, desde as trocas cafonas de juras de amor, passando pela natureza doentia da relação e culminando no comportamento sonso e autodestrutivo de sua protagonista.

Adaptado para o cinema por Kelly Marcel a partir do livro homônimo de E.L. James, o filme mostra como a atração mútua entre a estudante de literatura Anastasia Steele (Dakota Johnson) e o bilionário filantropo Christian Grey (Jamie Dornan) se converte em cento e vinte e cinco minutos de aborrecimento para o espectador. Avesso a relacionamentos convencionais e moderadamente misterioso, o Sr. Grey logo surge com uma proposta inusitada e ousada para a jovem Ana: estabelecendo um respaldo jurídico para a realização das fantasias sexuais do sujeito, a mulher deve assinar um contrato que a coloca no papel submisso de uma relação de dominação, transformando-a em uma espécie de escrava sexual do ricaço. Entretanto, quando a garota hesita diante das condições do acordo e confessa ainda ser virgem, o homem opta por baixar a guarda, reduzir o ritmo e introduzi-la no mundo do sexo e do sadomasoquismo gradualmente, reconfigurando a dinâmica do casal de um modo que nenhum dos dois esperava.

Rodeado, já de antemão, por discussões a respeito da forma como a relação íntima dos personagens reflete os papéis sociais de homens e mulheres, Cinquenta Tons de Cinza até se esforça para não botar mais lenha na fogueira e tenta se esquivar do suposto teor misógino do material original - e também pudera, considerando que a produção é escrita, adaptada, dirigida e protagonizada por mulheres, algo significativo e pouquíssimo usual. Vivida pela pouco conhecida e não muito talentosa Dakota Johnson, Anastasia é uma mulher modesta e insegura que, seduzida pelo charme de Christian, torna-se demasiadamente próxima do homem em busca de algo que ele não está apto ou disposto a oferecer, sendo pouco a pouco arrastada na direção do "salão de jogos" (apelido dado ao quarto dos sonhos de praticantes de BDSM) do luxuoso apartamento de Grey - e nem mesmo um conselho sincero da melhor amiga ("Faça as coisas no seu próprio tempo"), na fala mais lúcida de toda a projeção, parece surtir grandes efeitos no comportamento de Ana.

Da mesma forma, embora a protagonista imponha certos limites, tente eventualmente assumir o controle da relação e até mesmo ironize certas posturas risíveis de Christian (como no momento em que o sujeito assume de vez sua persona Edward Cullen e diz que os dois "precisam se afastar" e "não devem mais se ver", apenas para contradizer a si próprio algumas horas mais tarde), a personagem de Johnson também toma decisões incompreensíveis que inevitavelmente a desvalorizam como pessoa e mulher: reunida com o Sr. Grey para discutir cláusulas específicas do contrato, Ana levanta questionamentos extremamente pontuais, geralmente relacionadas a práticas sexuais específicas, mas permite que sejam mantidas exigências absurdas, que diminuem substancialmente suas liberdades como indivíduo (o documento dita até mesmo os hábitos alimentares que devem ser adotados pela contratada). Por fim, a diretora Sam Taylor-Johnson (O Garoto de Liverpool) pelo menos acerta ao fazer com que as relações sexuais dos personagens sejam ou pareçam consensuais - algo que, aparentemente, nem sempre ocorria no livro.

Dakota Johnson e Jamie Dornan em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)

Aliás, as tão aguardadas cenas de sexo são uma grande decepção, conduzidas pela cineasta de forma burocrática, convencional e surpreendentemente recatada, considerando o teor do material em que o filme é baseado (os esforços para evitar que a genitália dos atores fique à mostra, por exemplo, chegam a ser uma distração). E já que nem o conteúdo erótico - a grande atração do livro - recebe um tratamento apropriado, resta à roteirista Kelly Marcel tentar transformar o arco dramático do casal em algo pertinente e interessante - e, assim, a narrativa se torna um esforço imenso, tolo e patético de estudar seus personagens vazios e desinteressantes. Nessas circunstâncias, Anastasia se estabelece como uma figura ingênua, iludida e autodestrutiva que, cega de amor, abre espaço para que um abuso absolutamente desnecessário substitua um diálogo franco e esclarecedor - e seu maior pecado é, na realidade, projetar a responsabilidade por sua felicidade na figura de Christian e insistir em um relacionamento explicitamente problemático.

O que nos leva à construção do Sr. Grey, uma das peças-chave do fracasso do filme. Além de plantar pistas que não levam a lugar algum (por que ele evita sistematicamente sorrir?), o roteiro sugere vários conflitos internos do personagem que jamais são explorados com o devido cuidado, como sua aversão a relacionamentos ou a forma como a companhia de Anastasia estremece essa postura. Assim, embora o filme até tente transformá-lo em uma figura atraente (bonito, sarado, charmoso, bom de cama, rico, educado, atencioso, filantropo), Grey se estabelece como um canalha misógino, que verbaliza em várias oportunidades sua natureza possessiva ("Você é minha!") e não se intimida em tentar comprar as pessoas com sua riqueza ou brincar com os sentimentos de terceiros em prol de seus caprichos particulares. Por fim, Cinquenta Tons de Cinza ainda peca por fazer um desnecessário e desleal juízo de valor ao estreitar as fronteiras entre o BDSM e comportamentos abusivos - e embora essa seja uma prática sexual controversa, tudo leva a crer que se trata de uma atividade perfeitamente aceitável caso executada com segurança e, especialmente, de forma consensual.

Povoado por personagens secundários com pouca ou nenhuma função, Cinquenta Tons de Cinza conta com um desenvolvimento lento, frouxo e repetitivo que, por melhor que fosse, não resistiria aos catastróficos 10 minutos finais, quando um esboço vagabundo de clímax dramático abre caminho para um desfecho vergonhoso cuja preguiça, embora imensa e assustadora, ainda assim não supera a nossa pelas duas horas desperdiçadas.

Jamie Dornan em CINQUENTA TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey)

10 de fevereiro de 2015

A Casa dos Mortos

Scott Mechlowicz, Alex Goode, Aaron Yoo, Cody Horn, Dustin Milligan e Megan Park em A CASA DOS MORTOS (Demonic)

Alguns anos e um par de fracassos na carreira do malaio James Wan separam o sucesso inesperado de Jogos Mortais e o lançamento do bem sucedido Sobrenatural, quando o cineasta voltou a chamar a atenção do público e da crítica - mas foi só em 2013, com Invocação do Mal e Sobrenatural: Capítulo 2 transformando US$ 25 milhões de orçamento em US$ 480 milhões de bilheteria, que Wan se estabeleceu como um dos nomes mais importantes do cinema de terror da atualidade. Entretanto, contrariando as expectativas em relação a seu próximo projeto, o diretor surpreendeu ao assumir o comando do sétimo capítulo da franquia Velozes & Furiosos - o que não o impediu, entretanto, de manter-se ativo paralelamente no gênero que lhe rendeu fama, atuando como produtor no lucrativo Annabelle (spin-off de Invocação do Mal) e neste terrível A Casa dos Mortos.

Escrito pelo diretor Will Canon ao lado de Doug Simon e do argumentista Max La Bella, o filme acompanha um grupo de jovens que, interessados em matérias relacionadas ao ocultismo, decidem passar a noite em uma casa tida como mal assombrada e que, décadas antes, sediou uma bizarra e mal esclarecida chacina. Paralelamente, o longa retrata os esforços do detetive Mark Lewis (Frank Grillo) e da psicóloga Elizabeth Klein (Maria Bello) para desvendar os eventos ocorridos no local durante a permanência do grupo, que culminou em mortos, desaparecidos e um jovem em estado de choque cujo depoimento volátil só torna o caso ainda mais entranho e perturbador.

Produção enxuta que aposta em um elenco de segunda linha e em uma trama com poucos cenários e aparatos simples, A Casa dos Mortos depende imensamente de um roteiro inteligente e bem escrito e de uma direção firme para funcionar - e é justamente a falta desses elementos que condena de vez o projeto. Apelando para vários dos clichês mais batidos ligados a casas assombradas, ritos satânicos e possessão demoníaca, o texto ainda ousa vincular a péssima explicação por trás dos mistérios a reviravoltas absurdas que, vistas em retrospecto, apenas evidenciam a falta de criatividade e a arbitrariedade por trás do argumento de La Bella.

Por causa disso, pouco pode ser feito pelo desconhecido Will Canon para salvar a produção: os personagens e o pano de fundo da trama são incrivelmente mal desenvolvidos, o uso de câmeras amadoras pelos jovens (remetendo ao subgênero found footage) é falho e mal explorado e os poucos momentos de tensão são ofuscados por incontáveis sustos vazios, provocados, como sempre, por vultos, espíritos e explosões repentinas da trilha sonora. Além disso, o descaso com a inteligência do espectador é explícito em vários momentos, como naquele em que o simples mal funcionamento de uma caixa de música torna-se uma pista inexplicavelmente clara de que certo tapete disposto em outro cômodo da casa merece ser investigado.

Com pouco mais de 80 minutos de duração, A Casa dos Mortos é um projeto sem personalidade cujo desfecho, supostamente espetinho e terrificante, apenas causa raiva pela imbecilidade, vergonha pela presunção e uma rebarba de alívio, por sabermos que o martírio de assistir ao filme chegou ao fim.


Demonic, EUA/Reino Unido, 2015 | História de Max La Bella. Roteiro de Will Canon, Doug Simon e Max La Bella | Dirigido por Will Canon | Com Dustin Milligan, Frank Grillo, Maria Bello, Cody Horn, Scott Mechlowicz, Megan Park, Alex Goode, Aaron Yoo.

9 de fevereiro de 2015

Crítica | Corações de Ferro

Brad Pitt, Jon Bernthal, Shia LaBeouf, Logan Lerman e Michael Peña em CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

★★★★

Fury, EUA/China/Reino Unido, 2014 | Duração: 2h14m26s | Lançado no Brasil em 5 de fevereiro de 2015, nos cinemas | Escrito por David Ayer | Dirigido por David Ayer | Com Brad Pitt, Logan Lerman, Shia LaBeouf, Jon Bernthal, Michael Peña, Brad William Henke, Jason Isaacs, Jim Parrack, Anamaria Marinca e Alicia von Rittberg.

Pôster/capa/cartaz nacional de CORAÇÕES DE FERRO (Fury)
A violência é, sem dúvida, a matéria-prima central da carreira de David Ayer. Responsável pelo roteiro ou pela direção de filmes como Dia de Treinamento e Marcados Para Morrer, o cineasta não deixa, todavia, de investigar e discutir em seus trabalhos de que modo toda essa violência afeta e devasta o ser humano - e, deixando de lado os longas policiais e voltando-se para uma história ambientada em um cenário de guerra, Ayer dá sequência a esse empenho em Corações de Ferro com relativa eficiência.

O ano é 1945 e, embora a Segunda Guerra esteja perceptivelmente próxima do fim, os Aliados seguem no confronto com uma fraqueza clara e particular: seus tanques são expressivamente inferiores aos dos inimigos. Nesse contexto, o roteiro acompanha o sacrifício da equipe à bordo do tanque Fury, comandada pelo sargento Wardaddy (Brad Pitt) e para a qual cada dia sobrevivido é uma grande vitória. Quando o motorista auxiliar do grupo é morto em combate, o jovem datilógrafo Norman Ellison (Logan Lerman) é colocado no posto contra a vontade de todos, incluindo dele próprio - e seu notório despreparo para encarar os horrores da guerra estabelece a ponte imediata entre o espectador e o filme.

E, de modo geral, David Ayer se aproveita muito bem disso: vivido pelo promissor Logan Lerman (As Vantagens de Ser Invisível), Norman é um rapaz assustadiço que, embora capaz de digitar 60 palavras por minuto, não tem sangue frio ou estômago para tirar a vida de outro ser humano - algo que, em um cenário como aquele, pode acarretar consequências graves para os colegas e para ele próprio. Infelizmente, o roteiro peca por trabalhar o enrijecimento do personagem mais em torno de um evento específico do que do somatório de situações a que Norman é exposto, desperdiçando a construção gradual da deterioração psicológica do rapaz em prol de uma explicação mais redonda, pontual e de fácil compreensão para o público. Aliás, os propósitos da longa cena ambientada no apartamento de duas alemãs jamais ficam claros: o tempo e a atenção que o diretor dedica àquela situação denota sua suposta importância, mas apenas as personalidades dos tripulantes do Fury são sedimentadas em definitivo, enquanto nenhum outro tema mais delicado ou intimista é desenvolvido ou explorado de fato.

Logan Lerman e Brad Pitt em CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

Por outro lado, o filme acerta ao estabelecer os soldados como figuras humanas irremediavelmente devastadas pela guerra desde o início da projeção, quando os rostos sujos e insatisfeitos dominados por semblantes fechados são exibidos individualmente - o que funciona melhor, talvez, do que exibir o personagem de Brad Pitt se afastando do pelotão em duas situações distintas atrás de privacidade para abandonar sua postura durona por alguns segundos e externalizar seus verdadeiros sentimentos, o que soa ligeiramente repetitivo. Da mesma forma, o filme não economiza na visceralidade da representação do campo de batalha, transformando aquele espaço em um ambiente sempre sujo, inóspito e hostil e exibindo cadáveres, mutilações e alvejamentos de forma gráfica e chocante.

Ainda nesse sentido, algumas sequências de confronto merecem nota pelo resultado eficiente e impactante: intensificando o perigo da situação ao exibir projéteis como pequenos traços de luz bem visíveis cortando o ar, passagens como aquela em que os Aliados enfrentam anti-tanques na orla de uma floresta são muitíssimo bem conduzidas e finalizadas, com um trabalho impecável de montagem e mixagem de som. Infelizmente, o embate final não merece os mesmo elogios: ambientada em um fim de tarde (cujo escurecimento veloz chega a distrair o espectador), a sequência não facilita minimamente a compreensão do público quanto à geografia do confronto e jamais deixa claro a que lado pertence a vantagem ao longo do embate, já que nunca é possível saber ao certo quantos adversários ainda persistem na batalha.

Porém, não é só em aspectos técnicos que o ato final decepciona: a motivação por trás da escolha de embarcar naquele confronto em particular, embora razoavelmente justificada pelo psicológico retalhado de alguns dos personagens, é extremamente questionável, soando como uma espécie inoportuna de glorificação da guerra e da honraria por trás da braveza e da coragem dos combatentes. Somando-se a isso os problemas já mencionados e o uso abusivo e eventual de algumas convenções do gênero, Corações de Ferro se estabelece como um lançamento que, embora não acrescente muito ao assunto, faz relativamente bem o trabalho de representar a guerra com a frieza e brutalidade que lhe é particular.

CORAÇÕES DE FERRO (Fury)

7 de fevereiro de 2015

Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo


★★★★

Foxcatcher, EUA, 2014 | Duração: 2h09 | Lançado no Brasil em 22 de Janeiro de 2015, nos cinemas | Escrito por E. Max Frye e Dan Futterman | Dirigido por Bennett Miller | Com Steve Carell, Channing Tatum, Mark Ruffalo, Sienna Miller, Vanessa Redgrave, Anthony Michael Hall.

Pôster/capa/cartaz nacional de FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)
O subtítulo nacional de Foxcatcher figura entre as decisões mais mesquinhas tomadas por uma distribuidora brasileira nos últimos tempos. Explicitando o teor de um episódio que só é apresentando ao público em um momento tardio da narrativa, o subtítulo assume deliberadamente o risco de prejudicar a experiência daqueles que, como eu, entrarem na sala de cinema sabendo pouco ou nada sobre os acontecimentos reais que inspiraram a produção – e considerando que o "choque" só é consumado de fato nos minutos finais da projeção, a distribuidora acaba provendo ao público brasileiro duas horas de inquietude e expectativas desnecessárias que fatalmente comprometem, mesmo que em pequeno grau, o impacto do desfecho.

Felizmente, o filme é eficaz o bastante para resistir, alheio a esses prejuízos, como uma obra suficientemente interessante. Escrito por E. Max Frye e Dan Futterman, o roteiro acompanha Mark Schultz (Channing Tatum), um lutador que, como muitos esportistas, segue uma rotina de treinamento em que sua dedicação é inversamente proporcional ao suporte financeiro que recebe. Nesse contexto, Mark é surpreendido pela proposta do multimilionário John E. du Pont (Steve Carell), que lhe oferece remuneração mensal, moradia completa e acesso às instalações de ponta em sua propriedade, de modo que o sujeito ingresse na Equipe Foxcatcher e dê sequência à sua preparação para os Jogos Olímpicos de 1988.

O que exatamente o misterioso e endinheirado du Pont pretendia obter como retorno do investimento é uma dúvida que imediatamente intriga os personagens e, como não poderia deixar de ser, acaba sendo compartilhada pelo público – e este é apenas o embrião do cuidadoso estudo de personagem que conduz a narrativa dali em diante, quando os realizadores passam a investigar e tentam decifrar a personalidade por trás da fala mansa, da postura travada e das ações eventualmente inusitadas do milionário. Nesse sentido, o desempenho de Steve Carell (Amor a Toda Prova) é certeiro e louvável: conhecido por seu impecável timing cômico, o ator surge em cena com diversas próteses faciais e investe em uma composição (do tom de voz à linguagem corporal) ao mesmo tempo marcante e contida, transformando du Pont em um indivíduo absolutamente difícil de ser lido.

Steve Carell em FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)

Por essas e outras, é natural e esperado que o filme se afaste, pelo menos em alguns aspectos, da história real – e mesmo sem estar familiarizado com os detalhes do caso, tudo me leva a crer que os realizadores acertaram ao investir mais na construção de uma figura consistente como personagem do que no retrato fiel de uma personalidade real, especialmente em se tratando de um indivíduo cujas reais percepções sobre o mundo permanecem um mistério. Dessa forma, os roteiristas pincelam várias pistas ao longo da narrativa que ajudam o público a especular sobre as motivações por trás das atitudes mais extremas do personagem: socialmente inapto, solitário e ególatra inveterado, du Pont parece assumir um comportamento obsessivo e possessivo na relação com Mark, que foge dos padrões esperados tanto de uma amizade quanto de um vínculo profissional. Além disso, a prioridade dada à família em detrimento da carreira e a personalidade centrada do irmão do atleta, o também lutador David Schultz (Mark Ruffalo), parecem soar como uma pedra no sapato de du Pont, já que, ao contrário do caçula, o personagem de Ruffalo não parece enxergar motivo para ceder tão facilmente aos caprichos do ricaço – como fica evidente na passagem em que David fica visivelmente desconfortável ao ser induzido a tecer elogios inverídicos sobre du Pont diante de uma câmera e na presença do próprio.

Porém, embora o treinador vivido por Steve Carell seja a figura mais marcante e intrigante da trama, os demais personagens não são negligenciados pelo longa: com uma abordagem desapressada e intimista que remete a seu trabalho em Capote, o diretor Bennett Miller constrói o progresso e a eventual ruína de Mark de forma correta e cuidadosa, contando com um bom desempenho do esforçado Channing Tatum (O Destino de Júpiter). Já Mark Ruffalo (Os Vingadores), dando sequência a um ano admirável após o excelente trabalho no telefilme The Normal Heart, destaca-se por transformar com enorme talento David em um sujeito simples, batalhador, centrado e imensamente devoto à família – o que, eventualmente, o obriga a se dividir entre o irmão (conduzindo-o, de tabela, para perto de du Pont) e a esposa e os filhos, conforme as necessidades mais imediatas de cada um.

Dominado por uma atmosfera sempre fria e triste, Foxcatcher apresenta ao público uma história que, por incrível que pareça, não conta com um potencial cinematográfico tão evidente assim – e o simples fato de ter resultado em uma obra tão surpreendentemente eficaz já diz bastante sobre seus méritos.

Mark Ruffalo e Channing Tatum em FOXCATCHER: UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO (Foxcatcher)