21 de dezembro de 2014

Crítica | O Abutre

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

★★★★

Nightcrawler, EUA, 2014 | Duração: 1h57 | Lançado no Brasil em 18 de Dezembro de 2014, nos cinemas | Escrito por Dan Girloy | Dirigido por Dan Gilroy | Com Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Riz Ahmed e Bill Paxton.

Pôster/capa/cartaz nacional de O ABUTRE (Nightcrawler)
Ao ver O Abutre, é fácil perceber como a produção poderia muito bem ter resultado em um filme irrepreensível, mas é difícil definir exatamente o que seria capaz de torná-lo esta hipotética obra impecável. De toda forma, é um equívoco – ou apenas um mero desperdício de tempo – avaliar um filme pelo que ele poderia ter sido caso isto ou aquilo tivesse sido executado de forma diferente – e, além do mais, esta estreia na direção do roteirista Dan Gilroy é boa demais para abrir espaço pra esse tipo de discussão inconclusiva.

Na trama, Jake Gyllenhaal é Louis Bloom, um sujeito fracassado que tira seu sustento do instável e mal remunerado negócio de pequenos furtos no submundo de Los Angeles. Após testemunhar o trabalho de cinegrafistas autônomos que, na calada da noite, disputam os melhores e mais exclusivos ângulos de acidentes, catástrofes ou cenas de crime e oferecerem as imagens aos noticiários locais, Bloom decide tentar a sorte no ramo: com muita cara-de-pau e sem qualquer escrúpulo, o sujeito logo vence os percalços iniciais do ofício e se equipara a velhos profissionais da área, como o veterano Joe Loder (Bill Paxtor) e sua equipe. Entretanto, as ações de Bloom passam a deixar um rastro cada vez mais aterrador enquanto sua personalidade egocêntrica e seu caráter duvidoso o conduzem a um sucesso profissional e financeiro cujo custo extrapola qualquer limite moral conhecido.

Um dos destaques inegáveis do longa é, sem dúvidas, a atuação de Jake Gyllenhaal (Marcados Para Morrer): com uma carreira cada vez mais interessante, o ator surge em cena vários quilos mais magro, com um penteado desleixado e figurinos que ressaltam a silhueta mirrada do personagem e transforma Bloom em um sociopata cuja patética necessidade de atenção reverbera danosamente na vida de dezenas de indivíduos que cruzam seu caminho. Nesse sentido, o roteiro de Gilroy acerta em cheio ao construir calmamente a escalada de gravidade das ações do protagonista, que começa com uma mero rearranjo de fotografias familiares em uma geladeira alvejada por tiros em determinada cena de crime que Bloom acabara de invadir e alcança extremos que não convém expor nesse texto, mas não raramente surpreendem o espectador.

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

Além disso, a eficiência do texto de Gilroy é novamente comprovada pelo modo como a narrativa é estruturada: um evento que se torna motivador do conflito central da trama só é apresentado em meados da segunda metade da projeção, sem que tudo o que fora apresentado anteriormente pareça arrastado ou impertinente e, ainda, potencializando o suspense e a tensão da narrativa em sua reta final. Infelizmente, o tom adotado pelo cineasta soa equivocado em determinados momentos, oscilando erraticamente entre o realismo e a sátira: embora consiga calcar a narrativa em um universo suficientemente autêntico e palpável, Gilroy permeia a trama com eventos, personagens ou comportamentos cujo teor satírico excessivo praticamente obriga o espectador a lembrar que aquilo se trata de um filme, como a cena em que a dupla de âncoras de um telejornal descreve de modo absurdamente frio as filmagens fortes e gráficas das vítimas de uma chacina.

Todavia, o longa geralmente acerta ao estimular uma reflexão crítica através da exposição dos bastidores podres da imprensa sensacionalista (e, de tabela, alfineta o público de atrações dessa natureza, que é o grande responsável pela existência desse nicho), cuja demanda por sangue abre espaço para decisões irresponsáveis diversas e torna compreensível a postura de terceirizar a obtenção de imagens, já que assim a responsabilidade das redes de televisão quanto à produção desse tipo de conteúdo é reduzida – e, nesse sentido, o diálogo que traz a diretora de jornalismo vivida por Rene Russo (Thor) informando-se sobre as possíveis consequências da veiculação de determinadas imagens e enfatizando de forma debochada que sua preocupação diz respeito exclusivamente às questões jurídicas, e não morais, é absolutamente perfeito.

Contando com um ato final coerente e impactante, O Abutre é certamente uma das grandes surpresas do ano e tanto reafirma o talento de Gyllenhaal à frente das câmeras quanto comprova o potencial de Girloy por trás delas.

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

11 de dezembro de 2014

Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)

★★★

The Hobbit: The Battle of the Five Armies, Nova Zelândia/EUA, 2014 | Duração: 2h24 | Lançado no Brasil em 11 de Dezembro de 2014, nos cinemas | Baseado na obra de J.R.R. Tolkien. Roteiro de Fran Walsh & Philippa Boyens & Peter Jackson & Guillermo Del Toro | Dirigido por Peter Jackson | Com Martin Freeman, Richard Armitage, Orlando Bloom, Ian McKellen, Luke Evans, Evangeline Lilly, Lee Pace, Ainda Turner, Stephen Fry, Billy Connolly, Cate Blanchett, Hugo Weaving, Christopher Lee e a voz de Benedict Cumberbatch.

Pôster/capa/cartaz nacional de O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)
Quase três anos se passaram desde o anúncio do desmembramento de O Hobbit em uma trilogia cinematográfica e a decisão ainda me causa certo espanto. Note: não sou particularmente contra a divisão da adaptação da obra de Tolkien em mais de uma parte, pois acredito que a expectativa criada por uma interrupção pode favorecer a experiência do público, evitando que a jornada pareça mais corrida e menos épica do que o pretendido. No entanto, esta terceira e última parte da franquia comandada pelo neozelandês Peter Jackson é a evidência final – embora não tão contundente, felizmente – de que 474 minutos (ou quase 8 horas) de narrativa e três idas ao cinema são um tremendo exagero.

Dando continuidade ao mais eficiente capítulo da trilogia, A Batalha dos Cinco Exércitos é iniciado com os últimos momentos de vida de Smaug, que acaba sendo derrotado pelo bravo Bard (Luke Evans) após incendiar e devastar a Cidade do Lago. Porém, quando a notícia da morte do dragão se espalha pelos quatro cantos da Terra Média, exércitos de homens, elfos, anões e orcs estabelecem parcerias variadas e convergem para a Montanha Solitária para proteger, reivindicar ou saquear o vasto e agora desprotegido tesouro ali depositado – o que, claro, afeta os ânimos de todas aquelas criaturas e as coloca em iminente conflito.

Cerca de vinte minutos mais curto que os filmes anteriores, A Batalha dos Cinco Exércitos é notoriamente menos inchado que A Desolação de Smaug e, principalmente, Uma Jornada Inesperada: levando às telas um trecho relativamente pequeno do livro, o filme foca na rearticulação do cenário após a morte de Smaug e no tal confronto que eventualmente eclode, o que reduz o espaço e o tempo em que a ação acontece (a maior parte dos eventos se sucede nas redondezas da Cidade do Lago e, principalmente, da Montanha Solitária) e mantém os personagens envolvidos em um mesmo assunto, o que define um direcionamento mais claro para a narrativa. Assim, é frustrante que o roteiro ainda sofra com algum tipo de dispersão, como as cenas inseridas unicamente para resgatar personagens da trilogia O Senhor dos Anéis, a descartável subtrama envolvendo o covarde Alfrid (que acaba se tornando um alívio cômico ruim e fora do tom) ou o desfecho do triângulo amoroso envolvendo os elfos Legolas (Orlando Bloom) e Tauriel (Evangeline Lilly) e o anão Kili (Aidan Turner), que chega até mesmo a apelar para reflexões bregas e desconexas sobre o amor (que só perdem para aquela cafonice do recente Interestelar).

Além disso, o filme também é prejudicado pela enorme atenção que cede a personagens secundários, obliterando pontualmente aqueles tidos como centrais: enquanto Thorin (Richard Armitage) assume praticamente o posto de protagonista da trama (com Legolas logo atrás), o idolatrado mago Gandalf (Ian McKellen) pouco contribui para a narrativa e até mesmo o personagem que dá título à franquia permanece alheio em boa parte da projeção (o que é uma pena, já que Martin Freeman é simplesmente excelente como Bilbo), de modo que quando o hobbit finalmente retorna ao Condado, a injeção do sentimento de missão cumprida dada pelo diretor parece oca e forçada.

Ian McKellen e Luke Evans em O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)

Ainda nesse sentido, o encerramento da jornada também peca por apresentar confrontos menos empolgantes que o pretendido: o clímax, em particular, conta com um desfecho abrupto para a batalha de grande escala e volta as atenções para o embate individual entre seus líderes, que, embora interessante e bem coreografado, soa estranhamente ordinário (considerando que deve cumprir a grandiosa tarefa de amarrar uma trilogia desse porte) e ainda comete o terrível pecado de trazer certo personagem acreditando ingenuamente que seu adversário está derrotado sem qualquer evidência que comprove o fato. Felizmente, o filme confere algum (ainda que não muito) senso de urgência e perigo ao permitir que alguns dos mocinhos sofram consequências fatais por suas decisões e atitudes, embora o recurso acabe levemente desgastado pela reutilização em um curto período de tempo, diminuindo o impacto e comprometendo a carga dramática.

Do ponto de vista técnico, entretanto, A Batalha dos Cinco Exércitos é tão eficaz quanto o prometido. Sem grande alarde, o efeito 3D surge eficiente em um punhado de ocasiões, como, por exemplo, o momento em que acompanhamos de perto o voo de Smaug sobre a Cidade do Lago ou um belo plano em que vemos, a certa distância e com uma ótima profundidade de campo, Thorin caminhar sobre um rio congelado às margens de uma cachoeira. (Nota: infelizmente não poderei comentar o uso da tecnologia HFR – high frame rate – porque, pelo terceiro ano consecutivo, a distribuidora optou por apresentar à imprensa a versão com os convencionais 24 quadros por segundo). E enquanto a trilha de Howard Shore acerta mais uma vez em cheio ao remeter com nostalgia ao senso de aventura ou à influência do Um Anel com acordes de temas oriundos de seu próprio trabalho para a trilogia O Senhor dos Anéis, as criaturas digitais merecem os aplausos de sempre, embora eu ainda esteja moderadamente perplexo com a decisão de trazer o anão Dain (Billy Connolly) como um perceptível boneco de CGI (ora, todos os demais anões são vividos por atores de carne e osso; qual terá sido a dificuldade nesse caso?). Por fim, o trabalho de som que transforma um Thorin enfeitiçado pelo tesouro em uma criatura sombria e ameaçadora ou que faz a voz de Smaug, emprestada pelo excelente Benedict Cumberbatch, ecoar imponente pela sala de cinema é digno de nota e atenção.

Estabelecendo uma série de pequenas conexões com os eventos que se desenrolariam décadas mais tarde naquele universo, já apresentados ao público no início dos anos 2000 pelo próprio Peter Jackson, O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos é um desfecho apenas eficiente para um projeto que, possivelmente, teria sido amplamente beneficiado por uma abordagem mais enxuta e menos megalomaníaca.

Ian McKellen e Billy Connolly em O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)