17 de setembro de 2014

Crítica | O Doador de Memórias

Odeya Rush e Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

★★★

The Giver, EUA, 2014 | Duração: 1h37 | Lançado no Brasil em 11 de Setembro de 2014, nos cinemas | Baseado no livro de Lois Lowry. Roteiro de Michael Mitnick e Robert B. Weide | Dirigido por Phillip Noyce | Com Brenton Thwaites, Jeff Bridges, Odeya Rush, Alexander Skarsgård, Katie Holmes, Cameron Monaghan, Taylor Swift e Meryl Streep.

Pôster/capa/cartaz nacional de O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)
A fotografia é uma das principais ferramentas narrativas utilizadas pelo diretor veterano Phillip Noyce na adaptação cinematográfica (que levou quase duas décadas para sair do papel) do romance infanto-juvenil de Lois Lowry: ao longo de todo o primeiro ato, o esquema preto-e-branco (ousado, para uma produção desta natureza) reflete a drenagem da individualidade promovida na comunidade supostamente utópica apresentada pelo filme, cujos habitantes são condicionados a rígidas regras de conduta em prol de uma convivência pacífica e sadia. Graças a uma inquietação aparentemente nata em relação àquela organização social, a mesmice passa a ser vista com outros olhos pelo jovem Jonas (Brenton Thwaites) – quando, então, o personagem e o público gradativamente começam a enxergar aquele universo em cores (não sei se e como o livro trabalha essa questão), embora estas continuem refletindo a monotonia da comunidade através de uma paleta fria e triste.

Visto como peculiar pelo Conselho de Anciões, o rapaz é designado para o cargo de Receptor de Memórias – isto é, indivíduo que detém, com exclusividade naquele contexto, conhecimentos anteriores à instauração da mesmice e, com isso, torna-se apto a atuar como conselheiro e ajudar a manter o regime nos trilhos. Assim, Jonas é apresentado e passa a trabalhar com o Doador de Memórias (Jeff Bridges), único indivíduo daquele universo que parece exibir uma cota mínima de sobriedade, acompanhada de uma inequívoca e reveladora angústia. À medida em que o protagonista tem acesso às recordações do Doador e descobre a pluralidade do mundo e da natureza humana (quando, finalmente, a fotografia exibe cores vivas e vibrantes), sua inquietação atinge patamares inesperados – especialmente quando o jovem percebe que indivíduos indesejados, como idosos, deficientes e enfermos, continuam sendo vitimados pelo sistema.

É, naturalmente, uma premissa bastante crítica, cuja pertinência torna-se inegável quando olhamos ao nosso redor e nos deparamos constantemente tanto com o empenho generalizado de moldar os indivíduos com base em padrões tidos como corretos ou preferíveis por uma parcela da população quanto com a incapacidade da humanidade de combater e reverter conflitos, intolerâncias, disparidades e violência de forma incisiva. Infelizmente, o potencial da trama é fatalmente diluído pela introdução do conceito de Fronteira da Memória: ao admitir que o condicionamento daquela população está vinculado a uma barreira física, que isola as memórias antigas de uma maneira mágica e fantasiosa, a autora diminui a importância do óbvio processo de alienação a que aquela população fora submetida. E a própria narrativa se encarrega de apresentar os pilares que sustentam esse condicionamento: o comportamento dos habitantes é fruto de uma criação calculada, de um regime de conduta imposto e bem delimitado, do distanciamento de toda e qualquer informação que possa despertar anseios minimamente fervorosos e de drogas que, injetadas diariamente, reprimem boa parte das emoções naturais do ser humano; a existência de um campo de força que mantém esta ordem é desnecessária e, em última instância, não faz sentido.

Jeff Bridges e Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

Além disso, a mesmice é uma característica que, infelizmente, o projeto em si também compartilha: talvez pela demora para ganhar as telonas, O Doador de Memórias chega aos cinemas com um pequeno atraso e, involuntariamente, desperta no público recordações de produções bastante semelhantes, desde o recentíssimo Divergente até a ficção-científica A Ilha. Não que o filme não possua seus méritos – e o elenco é certamente um dos principais. Além da especialíssima presença de Meryl Streep, competente como a misteriosa e ameaçadora líder do anciões, o filme conta com uma atuação bastante agregadora de Jeff Bridges, que injeta peso, prostração e algum humor ao papel que o próprio ator (que também atua como produtor) considerava como ideal para seu pai, Lloyd Bridges. E enquanto a jovem Odeya Rush, uma mistura interessante de Mila Kunis com Nicola Peltz, surge como uma presença suficientemente marcante no papel da jovem Fiona, o promissor e simpático Brenton Thwaites (que já pôde ser visto este ano em Malévola e no terror O Espelho) aparenta segurança e possui carisma suficiente para carregar a narrativa nas costas, ao passo que a atriz e cantora Taylor Swift, fazendo uma pequena ponta, serve como mero imã para atrair mais jovens para as salas de cinema.

Com efeitos visuais satisfatórios e um design de produção competente, que apresenta a comunidade como uma ilhota asséptica e cravada de casas moduladas, O Doador de Memórias vale atenção por convidar a juventude a refletir sobre higienismo social, existência humana e pluralidade sem subestimar deliberadamente a inteligência de seu público – pelo menos até pouco antes de seu frustrante desfecho.

Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

Crítica | Rio, Eu Te Amo

Fernanda Montenegro e Eduardo Sterblitch no segmento "Dona Fulana" de RIO, EU TE AMO

★★★

Rio, Eu Te Amo, Brasil/EUA, 2014 | Duração: 1h50 | Lançado no Brasil em 11 de Setembro de 2014, nos cinemas | Escrito por Andrucha Waddington, Mauricio Zacharias, Paolo Sorrentino, Antonio Prata, Chico Mattoso, Stephan Elliott, John Turturro, Guillermo Arriaga, Sang-soo Im, Elena Soarez, Otavio Leonidio, Nadine Labaki, Rodney El Haddad, K. Mouzanar e Fellipe Barbosa | Dirigido por Vicente Amorim, Guillermo Arriaga, Stephan Elliott, Sang-soo Im, Nadine Labaki, Fernando Meirelles, José Padilha, Carlos Saldanha, Paolo Sorrentino, John Turturro e Andrucha Waddington | Com Basil Hoffman, Bebel Gilberto, Bruna Linzmeyer, Caio Junqueira, Cauã Antunes, Cláudia Abreu, Cleo Pires, Débora Nascimento, Eduardo Sterblitch, Emily Mortimer, Fernanda Montenegro, Harvey Keitel, Hugo Carvana, Jason Isaacs, John Turturro, Land Vieira, Laura Neiva, Marcelo Serrado, Márcio Garcia, Nadine Labaki, Regina Casé, Roberta Rodrigues, Rodrigo Santoro, Ryan Kwanten, Sandro Rocha, Stepan Nercessian, Tonico Pereira, Vanessa Paradis, Vincent Cassel, Wagner Moura.

Pôster/capa/cartaz de RIO, EU TE AMO
Antologias representam uma experiência atípica para o espectador convencional de Cinema. Ao contrário dos longa-metragens regulares, essas coletâneas de curtas – geralmente unidos por um tema ou por uma proposta comum – contam com um ritmo absolutamente particular, já que pequenos ciclos narrativos completos são iniciados e concluídos diversas vezes ao longo da projeção, exigindo que o público se adapte a personagens, conflitos, linguagens, abordagens e tons novos e distintos a todo momento. Além disso, ao distribuir o controle criativo por diversas mãos, a produção assume o risco de culminar em uma obra tanto irregular em qualidade quanto rica em sua diversidade.

Rio, Eu Te Amo, de modo geral, relaciona-se com todas as características apontadas no parágrafo anterior. Terceira entrada da franquia Cities of Love (que já passou por Paris e Nova York), o filme conta breves histórias de amor ambientadas na chamada cidade maravilhosa, comandadas tanto por cineastas locais (os cariocas José Padilha, Andrucha Waddington e Carlos Saldanha, o paulistano Fernando Meirelles e o austro-brasileiro Vicente Amorim) quanto por artistas internacionais (o americano John Turturro, o mexicano Guillermo Arriaga, o italiano Paolo Sorrentino, o australiano Stephen Elliott, a libanesa Nadine Labaki e o sul-coreano Sang-soo Im). Abraçando (ou não) hábitos, costumes, figuras e cenários tradicionais e icônicos da cidade, Rio, Eu Te Amo arrasta o espectador por uma jornada que oscila entre doçura, humor, melancolia, ternura, indiferença e, eventualmente, embaraço.

Neste sentido, a colaboração de Sang-soo Im talvez seja a mais incompreensível: com uma bizarra trama de vampirismo que jamais diz a que veio, o sul-coreano ainda consegue desperdiçar o talento do veterano Tonico Pereira, cuja composição inquieta e excêntrica desperta a curiosidade do público em vão, uma vez que o personagem e a trama nunca se tornam interessantes o suficiente. Da mesma forma, o episódio assinado e protagonizado por John Turturro decepciona por se concentrar em uma crise de relacionamento desinteressante entre um americano e uma francesa e ambientá-la em um cenário muito neutro, soando demasiadamente alheio à realidade carioca e, portanto, contribuindo pouco para a proposta do projeto. Já o fragmento comandado por Carlos Saldanha (conhecido pelo trabalho nas franquias de animação Rio e A Era do Gelo), estrelado por Rodrigo Santoro e Bruna Linzmeyer como um casal de bailarinos, apoia-se inteiramente no clichê da grande oportunidade de trabalho que, oferecida a apenas uma das partes da dupla, cria uma fissura na relação, funcionando moderadamente graças à forma como o número de balé desempenhado pelo casal e a tentativa de conciliação são entrelaçados.

Vincent Cassel no segmento "A Musa" de RIO, EU TE AMO

Quase excluído do corte final em decorrência de burocracias envolvendo os direitos de uso de imagem do Cristo Redentor, o curta de José Padilha é uma das grandes decepções da antologia: com Wagner Moura no papel de um homem que decide arejar a cabeça voando de asa delta pelo céu carioca, o episódio é repleto de lacunas e deixa o público tão no ar quanto o personagem, criando um sentimento inapropriado de incompletude. Aliás, a resolução é o que quase compromete o trabalho de Andrucha Waddington, que, reprisando diversas parcerias (Eduardo Sterblitch e Stepan Nercessian, de Os Penetras, Regina Casé, de Eu Tu Eles, e a sogra Fernanda Montenegro, de Casa de Areia), dá a seu pequeno conto uma amarração doce e catártica, mas um tantinho insatisfatória e abrupta – nada que a atuação impecável da sempre magnífica Fernanda Montenegro, no papel de uma moradora de rua idosa, não consiga abafar.

Por outro lado, embora também conte com um final aberto, a contribuição de Guillermo Arriaga é uma das mais interessantes: ambientado em cenários hostis e desesperançosos e povoado por personagens sofridos e miseráveis – marcas registradas do trabalho do mexicano como roteirista (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) -, "Texas" é, de longe, o episódio mais soturno do longa, conduzindo o casal vivido por Land Vieira e Laura Neiva através de um delicado dilema cuja resolução, em uma decisão acertada, é omitida do público. E enquanto Fernando Meirelles desenvolve um interessante, divertido e atraente exercício de estilo em um dos cenários mais emblemáticos da capital fluminense – o calçadão de pedras portuguesas em formato de ondas -, Nadine Labaki oferece aquele que talvez seja o mais adorável e arrebatador trecho da coletânea, mesmo contendo uma evidente veia manipuladora: em "O Milagre", a cineasta libanesa lança luz sobre a inocência da infância como uma força motriz da vida desprovida de luxo e por vezes sofrida de crianças carentes, apresentando ao público o incrível, jovem e espontâneo Cauã Antunes no papel de um garoto que monta guarda diante de um telefone público esperando uma ligação importantíssima de Jesus Cristo em pessoa.

Por fim, os trabalhos de Paolo Sorrentino e Stephan Elliott, mesmo contando com presenças internacionais como Emily Mortimer e Ryan Kwanten, não conseguem causar impressões muito fortes, ao passo que o casinho desenvolvido nas transições, sob o comando de Vicente Amorim, faz bem o serviço de sugerir que aquelas histórias coexistem em um mesmo espaço-tempo. No mais, Rio, Eu Te Amo acaba se estabelecendo como um passatempo mediano em que tanto os méritos quanto os deméritos acabam sendo diluídos em meio aos vários altos e baixos e à avalanche de rostos conhecidos.

Nadine Labaki e Harvey Keitel no segmento "O Milagre" de RIO, EU TE AMO