28 de fevereiro de 2014

Crítica | As Aventuras de Peabody e Sherman

AS AVENTURAS DE PEABODY E SHERMAN (Mr. Peabody & Sherman)

★★★

Mr. Peabody & Sherman, EUA, 2014 | Duração: 1h32 | Lançado no Brasil em 28 de Fevereiro de 2014, nos cinemas | Baseado nos personagens criados por Ted Key e na série produzida por Jay Ward. Escrito por Craig Wright | Dirigido por Rob Minkoff | Com as vozes de Ty Burrell, Max Charles, Ariel Winter, Allison Janney, Stephen Colbert, Leslie Mann, Stanley Tucci, Lake Bell, Patrick Warburton e Mel Brooks.

Pôster/capa/cartaz nacional de AS AVENTURAS DE PEABODY E SHERMAN (Mr. Peabody & Sherman)
Adotar uma premissa que envolve viagens no tempo (bem como suas implicações naturais) é um dos únicos riscos assumidos por As Aventuras de Peabody e Sherman – considerando-se, é claro, que se trata de um filme voltado para o público infantil. Em contrapartida, em praticamente todos os demais aspectos, a nova animação da DreamWorks/PDI aposta em fórmulas testadas exaustivamente e consagradas não só pela divisão de animação da própria produtora, como também pelos estúdios concorrentes – e embora a balança tenda para um saldo positivo, o déficit de frescor e arrojo da produção é notável.

Inspirado nos personagens criados por Ted Key para um segmento da série de animação Alceu e Dentinho, produzida por Jay Ward, o roteiro nos apresenta ao Sr. Peabody (Ty Burrell, na versão original, e Alexandre Borges, na versão brasileira), um cachorro falante e altamente intelectualizado que detém a tutela do garoto humano órfão Sherman (Max Charles). Dono de uma máquina do tempo inventada por ele próprio, Peabody preencheu a infância do rapaz com visitas aos mais diversos eventos da História e contato com um sem número de figuras históricas emblemáticas, graças às quais Sherman eventualmente viria a se tornar um nerd sedento por conhecimento. Nessas circunstâncias, após sofrer bullying no primeiro dia de aula, o garoto leva a coleguinha Penny (Ariel Winter) por uma viagem pelo espaço-tempo e acaba perdendo-a no Egito Antigo.

Dirigido por Rob Minkoff, cineasta mais bem sucedido em animações (O Rei Leão) que no campo do live action (Mansão Mal-Assombrada), As Aventuras de Peabody e Sherman adota uma preguiçosa estrutura de road movie que inevitavelmente torna a narrativa episódica: cada uma das paradas de Peabody, Sherman e Penny ao longo da viagem de volta ao presente (causadas por fatos bobos ou absurdos como "falta de energia da nave" ou "aparição repentina de um buraco negro no trajeto") se estabelece como um segmento com historinha própria, com pouca dependência entre si e raramente contribuindo para o desenvolvimento geral da narrativa ou dos personagens – e, quando o faz, investe em um terrível e previsível conflito causado pelo choque entre a secura e a formalidade de Sr. Peabody e a emotividade de Sherman na relação pai-filho.

AS AVENTURAS DE PEABODY E SHERMAN (Mr. Peabody & Sherman)

Além disso, o roteirista Craig Wright acaba se embaralhando com algumas implicações da viagem no tempo, mesmo que o filme não a explore com profundidade; basta observar que o roteirista simplesmente ignora que, no terceiro ato, duas Pennys coexistem na linha de tempo do presente, o que poderia alterar toda a dinâmica do desfecho. Por outro lado, as releituras despretensiosas e a simplificação exacerbada dos eventos históricos visitados pelos personagens respondem por boa parte da graça da animação, embora o aspecto educativo dessas decisões possa ser questionado pelos mais sisudos.

Já o restante do charme de As Aventuras de Peabody e Sherman reside nas apostas seguras que citei no primeiro parágrafo: o visual estilizado dos personagens e cenários (não seja tolo de esperar por formas geométricas muito simétricas), a natureza cartunesca do universo e seus habitantes (de indivíduos que usam óculos desde bebês até as colisões impactantes que não resultam em qualquer trauma para os envolvidos), a abundância de sequências de ação (sempre decupadas levando em consideração a melhor apreciação na versão em 3D), a frequência intensa de gags e a excentricidade (por vezes tendendo levemente à histeria) dos personagens contribuem para que o filme represente uma experiência divertida, mas nada muito além disso.

Apresentando uma ou outra gag inspiradíssima (as aparições da criança criada por Leonardo Da Vinci são hilárias pela simplicidade e despretensão nonsense) e contando com um trabalho razoável de Alexandre Borges na versão brasileira, As Aventuras de Peabody e Sherman merece reconhecimento por unir os elementos citados acima sem se tornar uma aberração como Meu Malvado Favorito, mas tampouco exibe força para dar início a uma franquia ou permanecer por muito tempo na memória do público.

AS AVENTURAS DE PEABODY E SHERMAN (Mr. Peabody & Sherman)

27 de fevereiro de 2014

Crítica | Sem Escalas

Liam Neeson em SEM ESCALAS (Non-Stop)

★★★

Non-Stop, Reino Unido/França/EUA, 2014 | Duração: 1h46 | Lançado no Brasil em 28 de fevereiro de 2014, nos cinemas | Argumento de John W. Richardson & Chris Roach. Roteiro de John W. Richardson & Chris Roach e Ryan Engle | Dirigido por Jaume Collet-Serra | Com Liam Neeson, Julianne Moore, Michelle Dockery, Corey Stoll, Scoot McNairy, Nate Parker, Jason Butler Harner, Linus Roache, Anson Mount, Omar Metwally, Lupita Nyong’o, Quinn McColgan e Shea Whigham.

Pôster/capa/cartaz nacional de SEM ESCALAS (Non-Stop)
No primeiro plano de Sem Escalas, um rack focus no para-brisa de um carro revela o ator Liam Neeson com um semblante fechado e representa nosso primeiro contato com o protagonista. No plano imediatamente seguinte, vemos o personagem, ainda dentro do automóvel, enchendo um copo de bebida. Alguns segundos mais tarde, o homem puxa o quebra-sol do veículo e a foto de uma garotinha fica visível.

Não é preciso ser um espectador particularmente sofisticado para ligar os fatos: com menos de um minuto de projeção, eu já sabia que estava prestes a acompanhar um sujeito alcoólatra e que essa condição possivelmente havia sido estimulada por alguma questão familiar, provavelmente envolvendo sua filha – e como Neeson já é um sexagenário e a garota da foto aparentava pouca idade, passei a acreditar que ela havia morrido jovem (e, no fundo, mantive a hipótese mesmo depois que o personagem insinua que a filha ainda estaria viva).

Eu estava absolutamente correto. E a profetização não parou por aí: ao notar que pistas nada sutis estavam sendo plantadas no início da projeção e considerando que realizadores do gênero têm o costume (quase vício) de se valer da ignorância do espectador em relação àquele universo e depositar ali, bem no comecinho, dicas mascaradas sobre a resolução do grande mistério da trama, redobrei imediatamente minha concentração e, graças a isso, consegui antecipar também a identidade do antagonista muito antes da dúvida sequer ser lançada pelo roteiro. Mas repito e reforço: não é preciso qualquer conhecimento cinematográfico extraordinário para chegar a essas conclusões; basta uma pequena experiência com filmes do gênero e um pouco de atenção em relação ao contingente de convenções que brotam na tela ao longo dos minutos iniciais.

Estreantes no Cinema, os roteiristas John W. Richardson, Chris Roach e Ryan Engle optam por sediar sua narrativa em um ambiente claustrofóbico por excelência e arquitetam um sequestro engenhoso, que pega até o agente federal aéreo Bill Marks (Liam Neeson) de surpresa. À paisana em uma aeronave comercial que atravessa o Atlântico, o sujeito passa a receber estranhas mensagens de texto de alguém que se anuncia como um dos passageiros do voo e promete matar uma pessoa a cada 20 minutos caso a importância de 150 milhões de dólares não for depositada em determinada conta bancária. Para piorar a situação, as autoridades passam a desconfiar que o próprio Marks possa ser o responsável pelo sequestro.

E até certo ponto, Richardson, Roach e Engle conseguem convencer o público da plausibilidade do plano e garantem a eficiência do suspense: a forma como Marks torna-se gradualmente digno de desconfiança por parte da tripulação, dos passageiros e da TSA possui seus pontos positivos, abraçando a paranoia generalizada e aumentada após os atentados de 11 de setembro. Infelizmente, a engenhosidade da armação torna-se cada vez mais absurda e furada à medida que a narrativa avança, uma vez que até os detalhes mais meticulosos parecem dar certo graças a conveniências das mais improváveis (como certo dispositivo foi parar dentro de um saco, escondido dentro de uma maleta ainda é a que mais me intriga) – e quando o(a) vilão(vilã) provoca o herói dizendo “Você não faz ideia de como foi fácil [realizar o plano]!”, só nos resta rir da cara-de-pau dos roteiristas.

Liam Neeson em SEM ESCALAS (Non-Stop)

Aliás, os escritores, em parceria com o diretor Jaume Collet-Serra (A Órfã), demonstram um senso de humor estranho, que até não chega a prejudicar efetivamente (embora tampouco contribua para) a atmosfera de suspense: além de várias gags pouco oportunas ou até possivelmente acidentais (não sei dizer se a intenção de fazer o público rir com o protagonista quebrando o nariz de um personagem apenas com o polegar foi ou não premeditada), os realizadores exibem um humor negro distinto ao abrir um rombo na fuselagem da aeronave justamente ao lado da poltrona de uma personagem com condição cardíaca que, embora já houvesse verbalizado incisivamente sua preferência pelos assentos da janela, acabara de ceder o lugar à única (e amedrontada) criança do avião. Por outro lado, Collet-Serra merece reconhecimento pelo esforço de criar um plano-sequência em um momento particularmente apreensivo da narrativa, embora a execução não chame muita atenção do ponto de vista técnico (não há o menor esforço para esconder os vários cortes, como comprovado pelo momento em que a câmera sai do avião por uma janela da classe executiva e retorna por uma da econômica).

No que diz respeito à distribuição das cópias do filme pelo mundo, vale destacar a decisão de traduzir visualmente as mensagens de texto trocadas pelos personagens – algo que, embora incômodo em um primeiro momento (especialmente quando algum plano-detalhe mostra o personagem digitando algo em inglês e um texto equivalente em português surge na tela do celular), acaba se revelando uma medida fundamental para que o público brasileiro consiga acompanhar a interação dos personagens sem perdas, especialmente quando legendas e as tais caixas de texto ampliadas dividem a tela. E o trabalho, possivelmente realizado na fonte, pela mesma Prologue Films que cuidou da tarefa na versão original, é muitíssimo bem executado: todos os efeitos sofridos pelo celular (como as rachaduras eventuais do visor ou a instabilidade durante certa turbulência) e as operações executadas pela câmera (como travellings circulares ou mudanças de foco) são respeitados e refletidos nas janelas de texto que surgem na tela, sem denotar qualquer amadorismo na adaptação.

Quanto ao elenco, Liam Neeson dá sequência à fase bad-ass tardia de sua carreira (A Perseguição, Busca Implacável) e segue no piloto automático, sendo eventualmente obrigado a se embaraçar graças às posturas absurdas que o personagem acaba por assumir: além de ser demasiadamente categórico (para um cara tão perspicaz) ao acusar cada um de seus suspeitos, Marks perde a chance de capturar mais rapidamente o(a) verdadeiro(a) criminoso(a) por agir como um personagem cinematográfico – isto é, lançando um olhar revelador ao(à) antagonista imediatamente após descobrir sua identidade – em vez de se portar como uma pessoa real – que, no caso, disfarçaria a descoberta para não conferir qualquer vantagem ao(à) vilão(vilã), pegando-a(o) desprevenido(a) posteriormente. Completando o elenco, a coadjuvante de luxo Julianne Moore e todos os demais atores surgem como meros peões colocados ali para assumirem o papel de suspeitos em momentos diferentes, embora alguns recebam uma inconveniente atenção especial (o personagem de Corey Stoll foi o primeiro que descartei como suspeito, tamanha a insistência do filme em nos convencer de que devemos desconfiar dele).

Amarrando pontas soltas com uma frouxidão estrategicamente encoberta por uma sequência final tensa e barulhenta, Sem Escalas ainda peca ao tocar em uma questão delicada como segurança nacional com levianidade, imaturidade e de forma excessivamente superficial. Antes tivesse se assumido como um mero entretenimento descerebrado.

Julianne Moore em SEM ESCALAS (Non-Stop)

21 de fevereiro de 2014

Crítica | 12 Anos de Escravidão

Michael Fassbender, Lupita Nyong'o e Chiwetel Ejiofor em 12 ANOS DE ESCRAVIDÃO (12 Years a Slave)

★★★★★

12 Years a Slave, EUA/Reino Unido, 2013 | Duração: 2h14 | Lançado no Brasil em 21 de Fevereiro de 2014, nos cinemas | Baseado no livro de Solomon Northup. Roteiro de John Ridley | Dirigido por Steve McQueen | Com Chiwetel Ejiofor, Lupita Nyong’o, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Sarah Paulson, Paul Dano, Paul Giamatti, Michael Kenneth Williams, Garret Dillahunt, Rob Steinberg, Adepero Oduye, Kelsey Scott, Scoot McNairy, Alfre Woodard, Quvenzhané Wallis, Cameron Zeigler e Brad Pitt.

Pôster/capa/cartaz nacional de 12 ANOS DE ESCRAVIDÃO (12 Years a Slave)
Não há formas legítimas de medir, comparar ou classificar o sofrimento humano. Abraçado a essa ideia, custo a acreditar que tanta gente tenha se incomodado com o fato de O Impossível – drama de sobrevivência ambientado na Tailândia durante e após a passagem do tsunami de 2004 – seja centrado em uma família branca, rica e linda, e não em alguns dos incontáveis e miseráveis nativos atingidos pela catástrofe. Ora, é evidente que os rostinhos de Naomi Watts e Ewan McGregor foram fundamentais para que o filme conseguisse financiamento e rendesse bem nas bilheterias internacionais, mas assim que a parede de água varre de forma violenta e impiedosa aquele cenário paradisíaco, etnias, posses, idiomas ou quaisquer outras características discriminatórias (para bem ou para mal) imediatamente perdem a importância. Além disso, embora foque nos dramas pessoais dos personagens centrais, o filme jamais ignora a tragédia coletiva – e não é à toa que (spoilers leves adiante), quando a família finalmente é retirada do país, a personagem de Naomi Watts surge observando devastada o cenário de destruição que aquela área se tornou, deixando claro que a satisfação de sair dali com vida e segurança é rivalizada pela angústia em relação ao futuro daqueles que estão sendo deixados para trás.

Gastei tantas linhas falando sobre o filme de J.A. Bayona por acreditar que aquela produção divide algumas interessantes semelhanças temáticas com este maravilhoso 12 Anos de Escravidão. Afinal (atenção: o restante deste parágrafo contém spoilers que, de certa forma, são dados pelo próprio título do filme. Então prossiga por sua conta e risco), quando finalmente reconquista a sua liberdade, Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) deixa a propriedade rural em que viveu por anos sob condições inóspitas tomado não só por uma esperada sensação de ansiedade e inédito alívio, mas também pelos sentimentos de comiseração e impotência por ser obrigado a deixar para trás indivíduos fadados ao sofrimento contínuo – cena esta que exerce essencialmente a mesma função que o plano que encerra O Impossível e que descrevi no fim do parágrafo anterior. Da mesma forma, o simples fato de Solomon ser um homem negro livre, que é afastado da família e passa a ser tratado como escravo após cair em um golpe, torna o suplício enfrentado pelo personagem mais digno de pena que o de seus companheiros, submetidos ao regime escravocrata desde o nascimento?

Respeitando o pensamento que defendi na abertura desse texto, a resposta óbvia para a pergunta é "não", embora seja inquestionável que as circunstâncias peculiares do arco do protagonista facilitem a identificação do público com o personagem. Adaptação cinematográfica do livro homônimo e autobiográfico de Solomon Northup, 12 Anos de Escravidão conta, como já antecipado, a história real de um homem livre que, acreditando na boa fé de dois homens entusiasmados com sua aptidão como violinista, planeja emprestar seu talento a uma trupe circense – e quando descobre as motivações escusas da dupla, Northup já está acorrentado em uma câmara escura, onde é forçado a assumir uma nova identidade – Platt – e passa a ser tratado e negociado como uma mercadoria.

Fincando o dedo em uma ferida ainda aberta da humanidade, Steve McQueen (Shame) não poupa o público de um reencontro visceral com alguns dos grandes horrores do regime escravocrata – e os maiores destaques nesse sentido são, sem dúvida, os dois longos planos em que o diretor testa os nervos do espectador, levando-os ao limite: aquele em que o protagonista precisa se equilibrar na ponta dos pés sob uma poça de lama para evitar o enforcamento e o outro em que a sofrida Patsey (Lupita Nyong’o) é praticamente mutilada, nas várias conotações que o termo pode assumir. Por outro lado, algumas passagens lamentavelmente alcançam resultados muito aquém da grandiosidade da obra – especialmente aquelas que envolvem o capataz vivido por Paul Dano, cuja composição demasiadamente carregada (e parcialmente herdada de seu papel em Cowboys & Aliens) enfraquece e compromete a participação do personagem na história.

Chiwetel Ejiofor em 12 ANOS DE ESCRAVIDÃO (12 Years a Slave)

Michael Fassbender, por outro lado, oferece um dos melhores desempenhos de sua carreira: abrindo mão de expressões ou comportamentos extremados, o ator constrói o caráter ameaçador do senhor de escravos Edwin Epps através da fala simultaneamente controlada e incisiva, do poder que ostenta e das eventuais recaídas do sujeito, nas quais a instabilidade e a impulsividade vêm à tona. Por outro lado, o badalado Benedict Cumberbatch, em uma participação menor, vive um escravocrata cuja postura mais ponderada e flexível, naquele contexto, é capaz de despertar até mesmo algum tipo de simpatia no público – diferentemente do talentoso Paul Giamatti, que não ganha tempo de tela suficiente para correr o risco de deixar seu cruel vendedor de escravos se tornar uma caricatura desinteressante. E enquanto a inexperiente Lupita Nyong’o rouba diversas cenas com suas expressividade, presença e segurança invejáveis, Brad Pitt surge como o maior erro de casting da produção: a figura do mega astro é carregada demais para cair bem no papel de um dos únicos indivíduos sensatos a dar as caras na narrativa, especialmente levando em consideração a importância e a particularidade da função que o personagem exerce.

Mas é mesmo Chiwetel Ejiofor (cujo nome finalmente aprendi a escrever sem consultas externas) quem acumula os maiores e mais merecidos elogios. Habituado a papéis de sujeitos mais atirados e imponentes, o ator consegue coordenar com precisão a fragilização inerente àquelas circunstâncias e a força necessária para sobreviver àquela dúzia de anos malditos. Nesse sentido, o roteiro de John Ridley também merece aplausos por conduzir de forma progressiva Solomon de encontro à persona de Platt, imprescindível para sua sobrevida naquele ambiente – isso sem mencionar, é claro, a sagacidade que Northup também precisa cultivar para lidar com situações repentinas de crise, como quando é confrontado na surdina da noite pelo amo Epps após a traição de um companheiro. Além disso, Ejiofor também é vitorioso nas cenas com maior carga dramática: além do arrebatador desfecho, o breve momento de catarse musical vivenciado pelo protagonista durante o funeral de um companheiro é particularmente tocante.

Tecnicamente impecável (a trilha discreta de Hans Zimmer agrada especialmente pelo aspecto camaleão do tema central, que se adapta admiravelmente bem às várias exigências emocionais da narrativa), 12 Anos de Escravidão ainda é capaz de, mesmo contando uma história ocorrida há mais de um século e meio, despertar reflexões sobre o presente: se hoje olhamos para todo aquele contexto com tanto espanto, como será que as várias divergências atuais envolvendo direitos humanos serão vistas pelas gerações futuras e o que está faltando para que avancemos mais rapidamente nesses quesitos? Isso, claro, se sua mente não estiver suficientemente impactada por este belíssimo trabalho.

Chiwetel Ejiofor em 12 ANOS DE ESCRAVIDÃO (12 Years a Slave)

20 de fevereiro de 2014

Crítica | Um Conto do Destino

Colin Farrell e Jessica Brown Findlay em UM CONTO DO DESTINO (Winter's Tale)


Winter's Tale, EUA, 2014 | Duração: 1h58 | Lançado no Brasil em 21 de Fevereiro de 2014, nos cinemas | Baseado no romance de Mark Helprin. Roteiro de Akiva Goldsman | Dirigido por Akiva Goldsman | Com Colin Farrell, Jessica Brown Findlay, Russell Crowe, Jennifer Connelly, William Hurt, Eva Marie Saint, Mckayla Twiggs, Ripley Sobo, Kevin Corrigan, Graham Greene, Kevin Durand, Finn Wittrock, Matt Bomer, Lucy Griffiths e Will Smith.

Atenção: este texto contém spoilers!

Pôster/capa/cartaz nacional de UM CONTO DO DESTINO (Winter's Tale)
Peter Lake (Colin Farrell) é um ladrão com alma bondosa. Beverly Penn (Jessica Brown Findlay) é uma jovem ruiva que sofre de tuberculose. Pearly Soames (Russell Crowe) é o maléfico e cruel ex-chefe de Peter Lake. E isso é tudo que você precisa saber sobre os três.

Quando está sendo perseguido por Pearly Soames e sua gangue na Nova York de 1914, Peter Lake encontra um cavalo branco mágico e consegue se safar. O animal, então, escolhe uma casa para Peter Lake assaltar, ocasião em que o ladrão acaba conhecendo e se apaixonando por Beverly Penn. E Beverly Penn também se apaixona à primeira vista por Peter Lake. Quando Pearly Soames descobre isso, tenta matar Beverly, mas Peter e o cavalo branco intercedem, salvam a garota e fogem. Pearly tenta fazer um pacto com o diabo para prosseguir com seus planos contra o casal, mas o Lúcifer vivido por Will Smith nega o pedido. Mesmo longe do alcance de Pearly, Beverly corre perigo, está morrendo. Peter fala palavras bonitas. Peter e Beverly passeiam nas redondezas de uma propriedade de campo da família Penn. Peter ganha a confiança do sogro. Frases de efeito dominam os diálogos de Peter e Beverly. Peter e Beverly dançam. Peter e Beverly trocam olhares e mais palavras bonitas. Peter e Beverly transam. Beverly morre.

Embora o alerta de spoiler tenha sido dado, peço perdão por ter exposto no parágrafo anterior, com razoável riqueza de detalhes, 60% do que Um Conto do Destino tem para contar – e se porventura você achou o início desse texto aborrecido e maçante, é porque provavelmente ainda não assistiu ao filme. Adaptado por Akiva Goldsman a partir do inacreditável montante de setecentas e poucas páginas preenchidas com a imaginação aparentemente fértil e prolixa de Mark Helprin (e lançado pela primeira vez no Brasil em 2014, sob o selo da Editora Novo Conceito), o longa tortura o espectador com uma das histórias de amor mais insossas e monotônicas já contadas e, ao desistir dela no meio do caminho, passa a depositar suas fichas na rivalidade enfadonha entre o protagonista e seu algoz, que passa a ameaçar a vida de uma garotinha apresentada ao público às vésperas do ato final da projeção.

Russell Crowe e Colin Farrell em UM CONTO DO DESTINO (Winter's Tale)

Nessas circunstâncias, o elenco pouco pode fazer: ator normalmente talentoso e carismático, Colin Farrell (Sete Psicopatas e um Shih Tzu) se esforça ao máximo para conferir peso e credibilidade ao arco do personagem e à narrativa como um todo, mas é sabotado constantemente por um texto pobre e redundante. Pelas mesma razões, a bela e pouco conhecida Jessica Brown Findlay (da série Downton Abbey) atravessa a projeção exibindo essencialmente três expressões, mais que adequadas à unidimensionalidade da personagem: uma para medo e hesitação, outra para contentamento e uma última para ocasiões de curiosidade. E enquanto a sumida Jennifer Connelly (E... Que Deus Nos Ajude!!!) dá vida à jornalista menos cética do universo, capaz de acreditar em uma trama de fantasia numa rapidez alarmante (não é à toa que a personagem escreve sobre culinária e é frustrada profissionalmente), Will Smith volta a dar sinais da proximidade da aposentadoria ao aceitar mais um papel secundário duvidoso em uma produção ruim (após uma longa carreira dedicada quase exclusivamente a protagonistas), mesmo não havendo a pretensão de impulsionar a carreira de algum de seus rebentos (como havia ocorrido em Depois da Terra).

Para completar, Russell Crowe (Os Miseráveis) se embaraça na pele de um vilão terrivelmente irritante e caricatural, cujas motivações tornam-se gradualmente menos compreensíveis à medida que o filme avança – e nem mesmo se Akiva Goldsman conseguisse construir a atmosfera de fábula que a obra teoricamente se propõe a adotar, o personagem de Crowe estaria mais adaptado ao tom da narrativa. Aliás, como se não bastasse o excesso de arbitrariedade do roteiro (coincidências e conveniências são constantemente justificadas pela natureza fantástica da narrativa) e a estupidez dos personagens (Peter Lake, no auge de sua inteligência, decide libertar seu cavalo mágico alado justamente na ocasião em que é emboscado pela gangue de Soames), Goldsman – estreando na função de diretor em longas-metragens – julga que o espectador é desatento, além de idiota – e só a plaquinha de metal com os dizeres "City of Justice", que exerce alguma função no desfecho, deve ser mostrada em plano-detalhe pelo menos vinte vezes ao longo da projeção.

Chamando atenção ainda pelas inconsistências temporais (provavelmente ocasionadas pela decisão do roteirista de trazer a segunda linha narrativa da década de 80 para os dias atuais e ignorar as adaptações necessárias), que nos obrigam a aceitar que uma senhorinha lúcida e ativa vivida por Eva Marie Saint possui mais de um século de vida, Um Conto do Destino é uma produção que acredita que a mistura de palavras como "milagre" ou "destino" com reflexões poéticas sobre estrelas, flares e uma trilha melosa de piano é suficiente para criar um romance de fantasia emocionante e digno de nota, mas acaba apenas aborrecendo e reafirmando a incompetência de seu diretor, produtor e roteirista.

Jennifer Connelly e Colin Farrell em UM CONTO DO DESTINO (Winter's Tale)

17 de fevereiro de 2014

Crítica | RoboCop

Joel Kinnaman e Gary Oldman em ROBOCOP

★★★★

RoboCop, EUA, 2014 | Duração: 1h57 | Lançado no Brasil em 21 de Fevereiro de 2014, nos cinemas | Baseado no filme de 1987 escrito por Edward Neumeier & Michael Miner. Roteiro de Joshua Zetumer e Edward Neumeier & Michael Miner | Dirigido por José Padilha | Com Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael Keaton, Abbie Cornish, Jackie Earle Haley, Michael K. Williams, Jennifer Ehle, Jay Baruchel, Aimee Garcia, Patrick Garrow e Samuel L. Jackson.

Pôster/capa/cartaz nacional de ROBOCOP
Com a informática e a robótica evoluindo a um ritmo alucinante, a perplexidade da humanidade em relação aos limites cognitivos de robôs e computadores, que já se arrasta há anos, tende a perdurar – e não é à toa que o Cinema contemporâneo continua investigando a temática não só em filmes de ação, mas também em dramas (como Frank e o Robô) e até mesmo em romances (como no recente, fabuloso e sensível Ela). Vinte e sete anos após Paul Verhoeven e os roteiristas Edward Neumeier e Michael Miner investigarem os conflitos internos e externos de um policial metade humano e metade máquina, o RoboCop está de volta aos cinemas em uma nova versão que, adaptada ao contexto atual (isto é, apresentando um futuro que reflete o nosso presente), continua exibindo o potencial de fomentar discussões éticas e sócio-políticas pertinentes.

Escrito pelo estreante Joshua Zetumer com base no filme de 1987, RoboCop desembarca no final da década de 2020 e encontra um mundo onde a segurança é mantida predominantemente por robôs, cujos softwares processam algoritmos capazes de identificar e combater possíveis ameaças. Embora produzam e exportem várias dessas máquinas e até mesmo as empreguem no lugar de soldados em guerras, poupando as vidas de centenas de jovens norte-americanos, os Estados Unidos mantém uma lei, apoiada pela expressiva maioria da população, que proíbe a utilização de robôs como agentes mantenedores de segurança em seu território – algo que desagrada e muito o magnata Raymond Sellars (Michael Keaton), CEO da OmniCorp. Acreditando que modificará a opinião pública ao inserir um elemento humano em seus produtos, Sellars procura o engenheiro biônico Dr. Dennett Norton (Gary Oldman) e encomenda um protótipo de ciborgue, a ser desenvolvido com algum policial inválido – e é aí que a trama de ambos se choca com a de Alex Murphy (Joel Kinnaman), detetive do Departamento de Polícia de Detroit que, após sofrer um atentado encomendado pelo mafioso Antoine Vallon (Patrick Garrow) e viabilizado por policiais corruptos, encontra-se gravemente mutilado e à beira da morte.

Felizmente, RoboCop abre mão da possibilidade de desenvolver um longa de ação futurista sobre um policial robótico combatendo o crime e se estabelece como um filme que, embora naturalmente voltado para a ação, trata essencialmente da angústia de um homem permanentemente vinculado a uma máquina, manipulado por seus criadores e constantemente tratado mais como um empreendimento multibilionário do que como um indivíduo. Assim, boa parte dos dois primeiros terços da projeção são destinados ao desenvolvimento dos conflitos psicológicos de Alex Murphy, que, no topo da discussão ética levantada pelo roteiro, é afastado da família e tem seu livre arbítrio suplantado pela ganância da OmniCorp – e o pouco conhecido ator sueco Joel Kinnaman (A Hora da Escuridão), em seu primeiro papel de maior destaque em Hollywood, faz um bom trabalho ao conferir angústia e vulnerabilidade ao olhar de Murphy em seus momentos de maior hesitação, além de transitar entre as emoções exigidas pelo personagem com a competência necessária.

E não é só Kinnaman que revela-se uma escolha acertada de casting: beneficiado por seu talento habitual, Gary Oldman transforma o Dr. Norton em um sujeito dividido entre a realização do grande projeto de sua carreira e o respeito às questões morais e éticas que permeiam o processo. Já Michael Keaton cria um personagem cujo antagonismo é apresentado de forma gradual, atingindo eventualmente um patamar em que permanece a um mísero passo da vilania – bastando, então, que suas ambições sejam ameaçadas para seus escrúpulos irem às favas. E enquanto a bela Abbie Cornish (Sete Psicopatas e um Shih Tzu), no papel da mulher do protagonista, pouco pode fazer com uma personagem com propósitos bem delimitados (embora maiores e mais interessantes que aqueles do filme original), Jackie Earle Haley cria um antagonista que flerta com a caricatura, tornando-se mais irritante à medida que ganha mais tempo de tela. Por fim, Samuel L. Jackson (Django Livre) surge como um dos destaques do elenco ao emprestar sua presença e voz imponente a um apresentador de tevê que diverte pela seriedade hilária que confere ao sensacionalismo hipócrita e ufanista que pratica.

Joel Kinnaman e Abbie Cornish em ROBOCOP

Marcando a estreia de José Padilha (Tropa de Elite) em Hollywood, RoboCop conta ainda com a colaboração de pelo menos mais três brasileiros, parceiros corriqueiros do cineasta: o diretor de fotografia Lula Carvalho, o montador Daniel Rezende (que divide a tarefa com Peter McNulty) e o compositor Pedro Bromfman desempenham suas funções com bastante competência (a trilha sonora, em particular, é ligeiramente genérica, mas funciona bem e acerta ao homenagear o tema clássico do personagem em momentos oportunos). Reafirmando o talento de Padilha como diretor, o filme apresenta sequências de ação eficientes e bem orquestradas (certo tiroteio do início da projeção inevitavelmente trará recordações de Tropa de Elite à mente de muitos espectadores), movimentos imaginativos de câmera (repare como os laboratórios são registrados sempre com fluidez e circularidade, refletindo a tecnologia, a sofisticação e a personalidade daqueles cenários e de seus equipamentos) e conta com um ritmo que consegue fisgar e manter a atenção e o interesse do público em boa parte do tempo. Além disso, Padilha merece reconhecimento por conseguir conciliar o impacto que a narrativa pretende causar com as limitações impostas pelo estúdio em busca de uma classificação indicativa mais abrangente: mesmo com níveis baixos de sangue, o filme possui sua cota de cenas fortes e intensas, o que é algo positivo.

E os elogios também podem se estender aos aspectos técnicos da produção: tanto a primeira versão da armadura (que homenageia o visual clássico) quanto a atualização possuem seu charme próprio, sem abrir mão da aparência funcional – e embora Kinnaman alegadamente tenha utilizado um pesado traje nos sets de filmagem, o resultado final apresenta um visual realista que consegue denotar a inexistência da porção inferior do corpo do personagem e a natureza mecânica do equipamento sem, na maior parte do tempo, exprimir a artificialidade de efeitos digitais. Da mesma forma, o design de produção de Martin Whist é hábil ao transformar, sem maiores afetações futurísticas, as várias locações canadenses em um versão decadente de Detroit, ao passo que o eficiente desenho de som exibe uma importância particular, por exemplo, na cena em que o protagonista enfrenta uma quadrilha em um ambiente demasiadamente escuro.

O roteiro, por outro lado, não merece tantos elogios: Zetumer peca, por exemplo, ao esperar que acreditemos que os cientistas envolvidos no projeto achem realmente apropriado realizar uma atualização desnecessária (e cujos resultados eles desconhecem) no sistema do RoboCop instantes antes de uma importante apresentação do protótipo para a mídia e para as autoridades. Além disso, é lamentável constatar que o embate final opte por resgatar elementos tolos do roteiro original e não consiga lidar muito bem com eles. E o que dizer da inexplicável falta de ação do alto escalão da OmniCorp, que identifica o potencial nocivo para os negócios da empresa de um pronunciamento público da insatisfeita Clara Murphy (Abbie Cornish), mas não toma qualquer medida efetiva para evitar que a mulher eventualmente procure a imprensa? Além disso, diante da enorme variedade de temas discutidos pelo Cinema de ficção científica ao longo dos anos, o conceito que embasa o filme fatalmente não possui mais o mesmo frescor que antigamente, deixando um fundinho amargo de repetição na boca do espectador.

Mas esses são problemas que, embora comprometam pontualmente a experiência, não impedem que RoboCop se estabeleça como um passatempo muitíssimo honesto e divertido.

Joel Kinnaman em ROBOCOP