Com a informática e a robótica evoluindo a um ritmo alucinante, a perplexidade da humanidade em relação aos limites cognitivos de robôs e computadores, que já se arrasta há anos, tende a perdurar – e não é à toa que o Cinema contemporâneo continua investigando a temática não só em filmes de ação, mas também em dramas (como
Frank e o Robô) e até mesmo em romances (como no recente, fabuloso e sensível
Ela). Vinte e sete anos após Paul Verhoeven e os roteiristas Edward Neumeier e Michael Miner investigarem os conflitos internos e externos de um policial metade humano e metade máquina, o RoboCop está de volta aos cinemas em uma nova versão que, adaptada ao contexto atual (isto é, apresentando um futuro que reflete o nosso presente), continua exibindo o potencial de fomentar discussões éticas e sócio-políticas pertinentes.
Escrito pelo estreante Joshua Zetumer com base no filme de 1987,
RoboCop desembarca no final da década de 2020 e encontra um mundo onde a segurança é mantida predominantemente por robôs, cujos softwares processam algoritmos capazes de identificar e combater possíveis ameaças. Embora produzam e exportem várias dessas máquinas e até mesmo as empreguem no lugar de soldados em guerras, poupando as vidas de centenas de jovens norte-americanos, os Estados Unidos mantém uma lei, apoiada pela expressiva maioria da população, que proíbe a utilização de robôs como agentes mantenedores de segurança em seu território – algo que desagrada e muito o magnata Raymond Sellars (Michael Keaton), CEO da OmniCorp. Acreditando que modificará a opinião pública ao inserir um elemento humano em seus produtos, Sellars procura o engenheiro biônico Dr. Dennett Norton (Gary Oldman) e encomenda um protótipo de ciborgue, a ser desenvolvido com algum policial inválido – e é aí que a trama de ambos se choca com a de Alex Murphy (Joel Kinnaman), detetive do Departamento de Polícia de Detroit que, após sofrer um atentado encomendado pelo mafioso Antoine Vallon (Patrick Garrow) e viabilizado por policiais corruptos, encontra-se gravemente mutilado e à beira da morte.
Felizmente,
RoboCop abre mão da possibilidade de desenvolver um longa de ação futurista sobre um policial robótico combatendo o crime e se estabelece como um filme que, embora naturalmente voltado para a ação, trata essencialmente da angústia de um homem permanentemente vinculado a uma máquina, manipulado por seus criadores e constantemente tratado mais como um empreendimento multibilionário do que como um indivíduo. Assim, boa parte dos dois primeiros terços da projeção são destinados ao desenvolvimento dos conflitos psicológicos de Alex Murphy, que, no topo da discussão ética levantada pelo roteiro, é afastado da família e tem seu livre arbítrio suplantado pela ganância da OmniCorp – e o pouco conhecido ator sueco Joel Kinnaman (
A Hora da Escuridão), em seu primeiro papel de maior destaque em Hollywood, faz um bom trabalho ao conferir angústia e vulnerabilidade ao olhar de Murphy em seus momentos de maior hesitação, além de transitar entre as emoções exigidas pelo personagem com a competência necessária.
E não é só Kinnaman que revela-se uma escolha acertada de casting: beneficiado por seu talento habitual, Gary Oldman transforma o Dr. Norton em um sujeito dividido entre a realização do grande projeto de sua carreira e o respeito às questões morais e éticas que permeiam o processo. Já Michael Keaton cria um personagem cujo antagonismo é apresentado de forma gradual, atingindo eventualmente um patamar em que permanece a um mísero passo da vilania – bastando, então, que suas ambições sejam ameaçadas para seus escrúpulos irem às favas. E enquanto a bela Abbie Cornish (
Sete Psicopatas e um Shih Tzu), no papel da mulher do protagonista, pouco pode fazer com uma personagem com propósitos bem delimitados (embora maiores e mais interessantes que aqueles do filme original), Jackie Earle Haley cria um antagonista que flerta com a caricatura, tornando-se mais irritante à medida que ganha mais tempo de tela. Por fim, Samuel L. Jackson (
Django Livre) surge como um dos destaques do elenco ao emprestar sua presença e voz imponente a um apresentador de tevê que diverte pela seriedade hilária que confere ao sensacionalismo hipócrita e ufanista que pratica.
Marcando a estreia de José Padilha (
Tropa de Elite) em Hollywood,
RoboCop conta ainda com a colaboração de pelo menos mais três brasileiros, parceiros corriqueiros do cineasta: o diretor de fotografia Lula Carvalho, o montador Daniel Rezende (que divide a tarefa com Peter McNulty) e o compositor Pedro Bromfman desempenham suas funções com bastante competência (a trilha sonora, em particular, é ligeiramente genérica, mas funciona bem e acerta ao homenagear o tema clássico do personagem em momentos oportunos). Reafirmando o talento de Padilha como diretor, o filme apresenta sequências de ação eficientes e bem orquestradas (certo tiroteio do início da projeção inevitavelmente trará recordações de
Tropa de Elite à mente de muitos espectadores), movimentos imaginativos de câmera (repare como os laboratórios são registrados sempre com fluidez e circularidade, refletindo a tecnologia, a sofisticação e a personalidade daqueles cenários e de seus equipamentos) e conta com um ritmo que consegue fisgar e manter a atenção e o interesse do público em boa parte do tempo. Além disso, Padilha merece reconhecimento por conseguir conciliar o impacto que a narrativa pretende causar com as limitações impostas pelo estúdio em busca de uma classificação indicativa mais abrangente: mesmo com níveis baixos de sangue, o filme possui sua cota de cenas fortes e intensas, o que é algo positivo.
E os elogios também podem se estender aos aspectos técnicos da produção: tanto a primeira versão da armadura (que homenageia o visual clássico) quanto a atualização possuem seu charme próprio, sem abrir mão da aparência funcional – e embora Kinnaman alegadamente tenha utilizado um pesado traje nos sets de filmagem, o resultado final apresenta um visual realista que consegue denotar a inexistência da porção inferior do corpo do personagem e a natureza mecânica do equipamento sem, na maior parte do tempo, exprimir a artificialidade de efeitos digitais. Da mesma forma, o design de produção de Martin Whist é hábil ao transformar, sem maiores afetações futurísticas, as várias locações canadenses em um versão decadente de Detroit, ao passo que o eficiente desenho de som exibe uma importância particular, por exemplo, na cena em que o protagonista enfrenta uma quadrilha em um ambiente demasiadamente escuro.
O roteiro, por outro lado, não merece tantos elogios: Zetumer peca, por exemplo, ao esperar que acreditemos que os cientistas envolvidos no projeto achem realmente apropriado realizar uma atualização desnecessária (e cujos resultados eles desconhecem) no sistema do RoboCop instantes antes de uma importante apresentação do protótipo para a mídia e para as autoridades. Além disso, é lamentável constatar que o embate final opte por resgatar elementos tolos do roteiro original e não consiga lidar muito bem com eles. E o que dizer da inexplicável falta de ação do alto escalão da OmniCorp, que identifica o potencial nocivo para os negócios da empresa de um pronunciamento público da insatisfeita Clara Murphy (Abbie Cornish), mas não toma qualquer medida efetiva para evitar que a mulher eventualmente procure a imprensa? Além disso, diante da enorme variedade de temas discutidos pelo Cinema de ficção científica ao longo dos anos, o conceito que embasa o filme fatalmente não possui mais o mesmo frescor que antigamente, deixando um fundinho amargo de repetição na boca do espectador.
Mas esses são problemas que, embora comprometam pontualmente a experiência, não impedem que
RoboCop se estabeleça como um passatempo muitíssimo honesto e divertido.