21 de dezembro de 2014

Crítica | O Abutre

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

★★★★

Nightcrawler, EUA, 2014 | Duração: 1h57 | Lançado no Brasil em 18 de Dezembro de 2014, nos cinemas | Escrito por Dan Girloy | Dirigido por Dan Gilroy | Com Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Riz Ahmed e Bill Paxton.

Pôster/capa/cartaz nacional de O ABUTRE (Nightcrawler)
Ao ver O Abutre, é fácil perceber como a produção poderia muito bem ter resultado em um filme irrepreensível, mas é difícil definir exatamente o que seria capaz de torná-lo esta hipotética obra impecável. De toda forma, é um equívoco – ou apenas um mero desperdício de tempo – avaliar um filme pelo que ele poderia ter sido caso isto ou aquilo tivesse sido executado de forma diferente – e, além do mais, esta estreia na direção do roteirista Dan Gilroy é boa demais para abrir espaço pra esse tipo de discussão inconclusiva.

Na trama, Jake Gyllenhaal é Louis Bloom, um sujeito fracassado que tira seu sustento do instável e mal remunerado negócio de pequenos furtos no submundo de Los Angeles. Após testemunhar o trabalho de cinegrafistas autônomos que, na calada da noite, disputam os melhores e mais exclusivos ângulos de acidentes, catástrofes ou cenas de crime e oferecerem as imagens aos noticiários locais, Bloom decide tentar a sorte no ramo: com muita cara-de-pau e sem qualquer escrúpulo, o sujeito logo vence os percalços iniciais do ofício e se equipara a velhos profissionais da área, como o veterano Joe Loder (Bill Paxtor) e sua equipe. Entretanto, as ações de Bloom passam a deixar um rastro cada vez mais aterrador enquanto sua personalidade egocêntrica e seu caráter duvidoso o conduzem a um sucesso profissional e financeiro cujo custo extrapola qualquer limite moral conhecido.

Um dos destaques inegáveis do longa é, sem dúvidas, a atuação de Jake Gyllenhaal (Marcados Para Morrer): com uma carreira cada vez mais interessante, o ator surge em cena vários quilos mais magro, com um penteado desleixado e figurinos que ressaltam a silhueta mirrada do personagem e transforma Bloom em um sociopata cuja patética necessidade de atenção reverbera danosamente na vida de dezenas de indivíduos que cruzam seu caminho. Nesse sentido, o roteiro de Gilroy acerta em cheio ao construir calmamente a escalada de gravidade das ações do protagonista, que começa com uma mero rearranjo de fotografias familiares em uma geladeira alvejada por tiros em determinada cena de crime que Bloom acabara de invadir e alcança extremos que não convém expor nesse texto, mas não raramente surpreendem o espectador.

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

Além disso, a eficiência do texto de Gilroy é novamente comprovada pelo modo como a narrativa é estruturada: um evento que se torna motivador do conflito central da trama só é apresentado em meados da segunda metade da projeção, sem que tudo o que fora apresentado anteriormente pareça arrastado ou impertinente e, ainda, potencializando o suspense e a tensão da narrativa em sua reta final. Infelizmente, o tom adotado pelo cineasta soa equivocado em determinados momentos, oscilando erraticamente entre o realismo e a sátira: embora consiga calcar a narrativa em um universo suficientemente autêntico e palpável, Gilroy permeia a trama com eventos, personagens ou comportamentos cujo teor satírico excessivo praticamente obriga o espectador a lembrar que aquilo se trata de um filme, como a cena em que a dupla de âncoras de um telejornal descreve de modo absurdamente frio as filmagens fortes e gráficas das vítimas de uma chacina.

Todavia, o longa geralmente acerta ao estimular uma reflexão crítica através da exposição dos bastidores podres da imprensa sensacionalista (e, de tabela, alfineta o público de atrações dessa natureza, que é o grande responsável pela existência desse nicho), cuja demanda por sangue abre espaço para decisões irresponsáveis diversas e torna compreensível a postura de terceirizar a obtenção de imagens, já que assim a responsabilidade das redes de televisão quanto à produção desse tipo de conteúdo é reduzida – e, nesse sentido, o diálogo que traz a diretora de jornalismo vivida por Rene Russo (Thor) informando-se sobre as possíveis consequências da veiculação de determinadas imagens e enfatizando de forma debochada que sua preocupação diz respeito exclusivamente às questões jurídicas, e não morais, é absolutamente perfeito.

Contando com um ato final coerente e impactante, O Abutre é certamente uma das grandes surpresas do ano e tanto reafirma o talento de Gyllenhaal à frente das câmeras quanto comprova o potencial de Girloy por trás delas.

Jake Gyllenhaal em O ABUTRE (Nightcrawler)

11 de dezembro de 2014

Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)

★★★

The Hobbit: The Battle of the Five Armies, Nova Zelândia/EUA, 2014 | Duração: 2h24 | Lançado no Brasil em 11 de Dezembro de 2014, nos cinemas | Baseado na obra de J.R.R. Tolkien. Roteiro de Fran Walsh & Philippa Boyens & Peter Jackson & Guillermo Del Toro | Dirigido por Peter Jackson | Com Martin Freeman, Richard Armitage, Orlando Bloom, Ian McKellen, Luke Evans, Evangeline Lilly, Lee Pace, Ainda Turner, Stephen Fry, Billy Connolly, Cate Blanchett, Hugo Weaving, Christopher Lee e a voz de Benedict Cumberbatch.

Pôster/capa/cartaz nacional de O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)
Quase três anos se passaram desde o anúncio do desmembramento de O Hobbit em uma trilogia cinematográfica e a decisão ainda me causa certo espanto. Note: não sou particularmente contra a divisão da adaptação da obra de Tolkien em mais de uma parte, pois acredito que a expectativa criada por uma interrupção pode favorecer a experiência do público, evitando que a jornada pareça mais corrida e menos épica do que o pretendido. No entanto, esta terceira e última parte da franquia comandada pelo neozelandês Peter Jackson é a evidência final – embora não tão contundente, felizmente – de que 474 minutos (ou quase 8 horas) de narrativa e três idas ao cinema são um tremendo exagero.

Dando continuidade ao mais eficiente capítulo da trilogia, A Batalha dos Cinco Exércitos é iniciado com os últimos momentos de vida de Smaug, que acaba sendo derrotado pelo bravo Bard (Luke Evans) após incendiar e devastar a Cidade do Lago. Porém, quando a notícia da morte do dragão se espalha pelos quatro cantos da Terra Média, exércitos de homens, elfos, anões e orcs estabelecem parcerias variadas e convergem para a Montanha Solitária para proteger, reivindicar ou saquear o vasto e agora desprotegido tesouro ali depositado – o que, claro, afeta os ânimos de todas aquelas criaturas e as coloca em iminente conflito.

Cerca de vinte minutos mais curto que os filmes anteriores, A Batalha dos Cinco Exércitos é notoriamente menos inchado que A Desolação de Smaug e, principalmente, Uma Jornada Inesperada: levando às telas um trecho relativamente pequeno do livro, o filme foca na rearticulação do cenário após a morte de Smaug e no tal confronto que eventualmente eclode, o que reduz o espaço e o tempo em que a ação acontece (a maior parte dos eventos se sucede nas redondezas da Cidade do Lago e, principalmente, da Montanha Solitária) e mantém os personagens envolvidos em um mesmo assunto, o que define um direcionamento mais claro para a narrativa. Assim, é frustrante que o roteiro ainda sofra com algum tipo de dispersão, como as cenas inseridas unicamente para resgatar personagens da trilogia O Senhor dos Anéis, a descartável subtrama envolvendo o covarde Alfrid (que acaba se tornando um alívio cômico ruim e fora do tom) ou o desfecho do triângulo amoroso envolvendo os elfos Legolas (Orlando Bloom) e Tauriel (Evangeline Lilly) e o anão Kili (Aidan Turner), que chega até mesmo a apelar para reflexões bregas e desconexas sobre o amor (que só perdem para aquela cafonice do recente Interestelar).

Além disso, o filme também é prejudicado pela enorme atenção que cede a personagens secundários, obliterando pontualmente aqueles tidos como centrais: enquanto Thorin (Richard Armitage) assume praticamente o posto de protagonista da trama (com Legolas logo atrás), o idolatrado mago Gandalf (Ian McKellen) pouco contribui para a narrativa e até mesmo o personagem que dá título à franquia permanece alheio em boa parte da projeção (o que é uma pena, já que Martin Freeman é simplesmente excelente como Bilbo), de modo que quando o hobbit finalmente retorna ao Condado, a injeção do sentimento de missão cumprida dada pelo diretor parece oca e forçada.

Ian McKellen e Luke Evans em O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)

Ainda nesse sentido, o encerramento da jornada também peca por apresentar confrontos menos empolgantes que o pretendido: o clímax, em particular, conta com um desfecho abrupto para a batalha de grande escala e volta as atenções para o embate individual entre seus líderes, que, embora interessante e bem coreografado, soa estranhamente ordinário (considerando que deve cumprir a grandiosa tarefa de amarrar uma trilogia desse porte) e ainda comete o terrível pecado de trazer certo personagem acreditando ingenuamente que seu adversário está derrotado sem qualquer evidência que comprove o fato. Felizmente, o filme confere algum (ainda que não muito) senso de urgência e perigo ao permitir que alguns dos mocinhos sofram consequências fatais por suas decisões e atitudes, embora o recurso acabe levemente desgastado pela reutilização em um curto período de tempo, diminuindo o impacto e comprometendo a carga dramática.

Do ponto de vista técnico, entretanto, A Batalha dos Cinco Exércitos é tão eficaz quanto o prometido. Sem grande alarde, o efeito 3D surge eficiente em um punhado de ocasiões, como, por exemplo, o momento em que acompanhamos de perto o voo de Smaug sobre a Cidade do Lago ou um belo plano em que vemos, a certa distância e com uma ótima profundidade de campo, Thorin caminhar sobre um rio congelado às margens de uma cachoeira. (Nota: infelizmente não poderei comentar o uso da tecnologia HFR – high frame rate – porque, pelo terceiro ano consecutivo, a distribuidora optou por apresentar à imprensa a versão com os convencionais 24 quadros por segundo). E enquanto a trilha de Howard Shore acerta mais uma vez em cheio ao remeter com nostalgia ao senso de aventura ou à influência do Um Anel com acordes de temas oriundos de seu próprio trabalho para a trilogia O Senhor dos Anéis, as criaturas digitais merecem os aplausos de sempre, embora eu ainda esteja moderadamente perplexo com a decisão de trazer o anão Dain (Billy Connolly) como um perceptível boneco de CGI (ora, todos os demais anões são vividos por atores de carne e osso; qual terá sido a dificuldade nesse caso?). Por fim, o trabalho de som que transforma um Thorin enfeitiçado pelo tesouro em uma criatura sombria e ameaçadora ou que faz a voz de Smaug, emprestada pelo excelente Benedict Cumberbatch, ecoar imponente pela sala de cinema é digno de nota e atenção.

Estabelecendo uma série de pequenas conexões com os eventos que se desenrolariam décadas mais tarde naquele universo, já apresentados ao público no início dos anos 2000 pelo próprio Peter Jackson, O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos é um desfecho apenas eficiente para um projeto que, possivelmente, teria sido amplamente beneficiado por uma abordagem mais enxuta e menos megalomaníaca.

Ian McKellen e Billy Connolly em O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (The Hobbit: The Battle of the Five Armies)

6 de outubro de 2014

Crítica | Garota Exemplar

Ben Affleck, Lisa Banes e David Clennon em GAROTA EXEMPLAR (Gone Girl)

★★★★

Gone Girl, EUA, 2014 | Duração: 2h29 | Lançado no Brasil em 2 de Outubro de 2014, nos cinemas | Baseado no romance de Gillian Flynn. Roteiro de Gillian Flynn | Dirigido por David Fincher | Com Ben Affleck, Rosamund Pike, Carrie Coon, Kim Dickens, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Patrick Fugit, Missi Pyle, Scoot McNairy.

Pôster/capa/cartaz nacional de GAROTA EXEMPLAR (Gone Girl)
A cabeça loura de Rosamund Pike acomodada no colo de Ben Affleck é a primeira imagem que vemos em Garota Exemplar, enquanto a narração em off do ator compartilha com o público o desejo do personagem de entender melhor o que se passa na cabeça da esposa. Entretanto, o que chama a atenção na abertura do novo trabalho de David Fincher não é essa mera constatação sobre a relação do casal, mas a forma inusitadamente atroz como ela é feita: Nick Dunne confessa ter vontade de arrebentar o crânio de Amy e desembolar seu cérebro para ver se, assim, consegue decifrar o funcionamento da mente da mulher.

E estes são apenas os vinte primeiros e levemente perturbadores segundos de uma obra intrigante e complexa que vai de suspense investigativo a thriller psicológico ao longo de suaves duas horas e vinte e nove minutos. Escrito por Gillian Flynn com base em seu próprio romance, o roteiro gira em torno da investigação do desaparecimento de Amy, que some misteriosamente de sua casa no quinto aniversário do casamento com Nick. Com vestígios que apontam para a possibilidade da ocorrência de um crime, o caso gradativamente muda de figura quando passa a receber uma cobertura minuciosa e sensacionalista da mídia, que vê o comportamento levemente apático e aéreo de Nick como digno de suspeita.

Com uma admirável carreira fortemente fundamentada no gênero suspense investigativo (de Seven - Os Sete Crimes Capitais a Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, passando por Zodíaco), David Fincher soa como uma escolha óbvia e perfeita para a adaptação: mestre em manter o público curioso, interessado e intrigado (e aí podemos incluir também seu trabalho em O Quarto do Pânico e, especialmente, em Clube da Luta e Vidas em Jogo), o diretor conduz o excelente roteiro de Flynn com precisão e atenção especial aos detalhes; pistas e respectivas recompensas são inseridas na narrativa sempre de forma clara, mas sem subestimar a inteligência do público (repare, por exemplo, como o hábito de leitura de Amy é mencionado sem muito alarde por Nick durante um depoimento, mas ressurge como um elemento significativo durante um importante flashback). Além disso, o diretor e a roteirista são hábeis em manter o espectador tão desinformado quanto cada etapa da narrativa exige: quando descobrimos que Nick traía Amy, por exemplo, nosso palpite sobre a provável harmonia do casal começa a cair por terra, junto com a imagem de bom moço do sujeito.

Ben Affleck, Patrick Fugit, David Clennon, Lisa Banes e Kim Dickens em GAROTA EXEMPLAR (Gone Girl)

Affleck (Argo), aliás, contraria a fama de ator inexpressivo (ou talvez se aproveite dela) e surge como uma escolha adequada para o papel, transformando Dunne em um sujeito falho, progressivamente ansioso e naturalmente despreparado para a situação em que acaba envolvido. Já Carrie Coon (da série The Leftovers) inspira confiança e lealdade como a irmã gêmea e braço direito de Nick, ao passo que Kim Dickens exala competência, inteligência e experiência – características essenciais à detetive encarregada do caso. Por fim, Rosamund Pike (Jack Reacher: O Último Tiro) reforça bem o seu talento como atriz ao acompanhar o crescimento da personagem com entrega, intensidade e ambiguidade.

A estrutura corajosa do roteiro é outro dos méritos de Garota Exemplar – e também um de seus principais defeitos. Por um lado, a decisão de encerrar a trama investigativa de forma inesperadamente antecipada revela-se não só acertada, como também necessária para que a narrativa evolua, ainda que por rumos distintos – e essa transição, embora notável, praticamente não é sentida pelo espectador, em termos de ritmo e interesse pelas surpresas que o roteiro ainda reserva. A virada final, entretanto, não merece os mesmos elogios: sim, a atmosfera de thriller psicológico que se instaura no último ato da projeção é correta e coerente com o restante da narrativa, mas cria no público expectativas que não chegam a ser cumpridas e abre uma porção de pequenos furos que a autora prefere ignorar, fazendo com que o desfecho, embora emblemático, deixe uma leve sensação de frustração no ar.

Ganhando pontos ainda por alfinetar a cobertura normalmente nociva e sensacionalista da imprensa em torno de investigações criminais específicas (a tempestade esquizofrênica de flashes fotográficos que invade a residência dos Dunne em diversas ocasiões é perfeita) e pela habilidade de estabelecer a natureza de situações ou personagens através de minúcias e sutilezas (como, por exemplo, uma cuspida em certa bebida sedimentando de vez a sociopatia de determinada figura), Garota Exemplar é uma agradável surpresa para aqueles que não tiverem dificuldade de se adaptar às leves mudanças de tom da narrativa e estiverem interessados na psique curiosa dos personagens que Flynn, Fincher e seus atores juntaram forças para construir.

Rosamund Pike em GAROTA EXEMPLAR (Gone Girl)

17 de setembro de 2014

Crítica | O Doador de Memórias

Odeya Rush e Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

★★★

The Giver, EUA, 2014 | Duração: 1h37 | Lançado no Brasil em 11 de Setembro de 2014, nos cinemas | Baseado no livro de Lois Lowry. Roteiro de Michael Mitnick e Robert B. Weide | Dirigido por Phillip Noyce | Com Brenton Thwaites, Jeff Bridges, Odeya Rush, Alexander Skarsgård, Katie Holmes, Cameron Monaghan, Taylor Swift e Meryl Streep.

Pôster/capa/cartaz nacional de O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)
A fotografia é uma das principais ferramentas narrativas utilizadas pelo diretor veterano Phillip Noyce na adaptação cinematográfica (que levou quase duas décadas para sair do papel) do romance infanto-juvenil de Lois Lowry: ao longo de todo o primeiro ato, o esquema preto-e-branco (ousado, para uma produção desta natureza) reflete a drenagem da individualidade promovida na comunidade supostamente utópica apresentada pelo filme, cujos habitantes são condicionados a rígidas regras de conduta em prol de uma convivência pacífica e sadia. Graças a uma inquietação aparentemente nata em relação àquela organização social, a mesmice passa a ser vista com outros olhos pelo jovem Jonas (Brenton Thwaites) – quando, então, o personagem e o público gradativamente começam a enxergar aquele universo em cores (não sei se e como o livro trabalha essa questão), embora estas continuem refletindo a monotonia da comunidade através de uma paleta fria e triste.

Visto como peculiar pelo Conselho de Anciões, o rapaz é designado para o cargo de Receptor de Memórias – isto é, indivíduo que detém, com exclusividade naquele contexto, conhecimentos anteriores à instauração da mesmice e, com isso, torna-se apto a atuar como conselheiro e ajudar a manter o regime nos trilhos. Assim, Jonas é apresentado e passa a trabalhar com o Doador de Memórias (Jeff Bridges), único indivíduo daquele universo que parece exibir uma cota mínima de sobriedade, acompanhada de uma inequívoca e reveladora angústia. À medida em que o protagonista tem acesso às recordações do Doador e descobre a pluralidade do mundo e da natureza humana (quando, finalmente, a fotografia exibe cores vivas e vibrantes), sua inquietação atinge patamares inesperados – especialmente quando o jovem percebe que indivíduos indesejados, como idosos, deficientes e enfermos, continuam sendo vitimados pelo sistema.

É, naturalmente, uma premissa bastante crítica, cuja pertinência torna-se inegável quando olhamos ao nosso redor e nos deparamos constantemente tanto com o empenho generalizado de moldar os indivíduos com base em padrões tidos como corretos ou preferíveis por uma parcela da população quanto com a incapacidade da humanidade de combater e reverter conflitos, intolerâncias, disparidades e violência de forma incisiva. Infelizmente, o potencial da trama é fatalmente diluído pela introdução do conceito de Fronteira da Memória: ao admitir que o condicionamento daquela população está vinculado a uma barreira física, que isola as memórias antigas de uma maneira mágica e fantasiosa, a autora diminui a importância do óbvio processo de alienação a que aquela população fora submetida. E a própria narrativa se encarrega de apresentar os pilares que sustentam esse condicionamento: o comportamento dos habitantes é fruto de uma criação calculada, de um regime de conduta imposto e bem delimitado, do distanciamento de toda e qualquer informação que possa despertar anseios minimamente fervorosos e de drogas que, injetadas diariamente, reprimem boa parte das emoções naturais do ser humano; a existência de um campo de força que mantém esta ordem é desnecessária e, em última instância, não faz sentido.

Jeff Bridges e Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

Além disso, a mesmice é uma característica que, infelizmente, o projeto em si também compartilha: talvez pela demora para ganhar as telonas, O Doador de Memórias chega aos cinemas com um pequeno atraso e, involuntariamente, desperta no público recordações de produções bastante semelhantes, desde o recentíssimo Divergente até a ficção-científica A Ilha. Não que o filme não possua seus méritos – e o elenco é certamente um dos principais. Além da especialíssima presença de Meryl Streep, competente como a misteriosa e ameaçadora líder do anciões, o filme conta com uma atuação bastante agregadora de Jeff Bridges, que injeta peso, prostração e algum humor ao papel que o próprio ator (que também atua como produtor) considerava como ideal para seu pai, Lloyd Bridges. E enquanto a jovem Odeya Rush, uma mistura interessante de Mila Kunis com Nicola Peltz, surge como uma presença suficientemente marcante no papel da jovem Fiona, o promissor e simpático Brenton Thwaites (que já pôde ser visto este ano em Malévola e no terror O Espelho) aparenta segurança e possui carisma suficiente para carregar a narrativa nas costas, ao passo que a atriz e cantora Taylor Swift, fazendo uma pequena ponta, serve como mero imã para atrair mais jovens para as salas de cinema.

Com efeitos visuais satisfatórios e um design de produção competente, que apresenta a comunidade como uma ilhota asséptica e cravada de casas moduladas, O Doador de Memórias vale atenção por convidar a juventude a refletir sobre higienismo social, existência humana e pluralidade sem subestimar deliberadamente a inteligência de seu público – pelo menos até pouco antes de seu frustrante desfecho.

Brenton Thwaites em O DOADOR DE MEMÓRIAS (The Giver)

Crítica | Rio, Eu Te Amo

Fernanda Montenegro e Eduardo Sterblitch no segmento "Dona Fulana" de RIO, EU TE AMO

★★★

Rio, Eu Te Amo, Brasil/EUA, 2014 | Duração: 1h50 | Lançado no Brasil em 11 de Setembro de 2014, nos cinemas | Escrito por Andrucha Waddington, Mauricio Zacharias, Paolo Sorrentino, Antonio Prata, Chico Mattoso, Stephan Elliott, John Turturro, Guillermo Arriaga, Sang-soo Im, Elena Soarez, Otavio Leonidio, Nadine Labaki, Rodney El Haddad, K. Mouzanar e Fellipe Barbosa | Dirigido por Vicente Amorim, Guillermo Arriaga, Stephan Elliott, Sang-soo Im, Nadine Labaki, Fernando Meirelles, José Padilha, Carlos Saldanha, Paolo Sorrentino, John Turturro e Andrucha Waddington | Com Basil Hoffman, Bebel Gilberto, Bruna Linzmeyer, Caio Junqueira, Cauã Antunes, Cláudia Abreu, Cleo Pires, Débora Nascimento, Eduardo Sterblitch, Emily Mortimer, Fernanda Montenegro, Harvey Keitel, Hugo Carvana, Jason Isaacs, John Turturro, Land Vieira, Laura Neiva, Marcelo Serrado, Márcio Garcia, Nadine Labaki, Regina Casé, Roberta Rodrigues, Rodrigo Santoro, Ryan Kwanten, Sandro Rocha, Stepan Nercessian, Tonico Pereira, Vanessa Paradis, Vincent Cassel, Wagner Moura.

Pôster/capa/cartaz de RIO, EU TE AMO
Antologias representam uma experiência atípica para o espectador convencional de Cinema. Ao contrário dos longa-metragens regulares, essas coletâneas de curtas – geralmente unidos por um tema ou por uma proposta comum – contam com um ritmo absolutamente particular, já que pequenos ciclos narrativos completos são iniciados e concluídos diversas vezes ao longo da projeção, exigindo que o público se adapte a personagens, conflitos, linguagens, abordagens e tons novos e distintos a todo momento. Além disso, ao distribuir o controle criativo por diversas mãos, a produção assume o risco de culminar em uma obra tanto irregular em qualidade quanto rica em sua diversidade.

Rio, Eu Te Amo, de modo geral, relaciona-se com todas as características apontadas no parágrafo anterior. Terceira entrada da franquia Cities of Love (que já passou por Paris e Nova York), o filme conta breves histórias de amor ambientadas na chamada cidade maravilhosa, comandadas tanto por cineastas locais (os cariocas José Padilha, Andrucha Waddington e Carlos Saldanha, o paulistano Fernando Meirelles e o austro-brasileiro Vicente Amorim) quanto por artistas internacionais (o americano John Turturro, o mexicano Guillermo Arriaga, o italiano Paolo Sorrentino, o australiano Stephen Elliott, a libanesa Nadine Labaki e o sul-coreano Sang-soo Im). Abraçando (ou não) hábitos, costumes, figuras e cenários tradicionais e icônicos da cidade, Rio, Eu Te Amo arrasta o espectador por uma jornada que oscila entre doçura, humor, melancolia, ternura, indiferença e, eventualmente, embaraço.

Neste sentido, a colaboração de Sang-soo Im talvez seja a mais incompreensível: com uma bizarra trama de vampirismo que jamais diz a que veio, o sul-coreano ainda consegue desperdiçar o talento do veterano Tonico Pereira, cuja composição inquieta e excêntrica desperta a curiosidade do público em vão, uma vez que o personagem e a trama nunca se tornam interessantes o suficiente. Da mesma forma, o episódio assinado e protagonizado por John Turturro decepciona por se concentrar em uma crise de relacionamento desinteressante entre um americano e uma francesa e ambientá-la em um cenário muito neutro, soando demasiadamente alheio à realidade carioca e, portanto, contribuindo pouco para a proposta do projeto. Já o fragmento comandado por Carlos Saldanha (conhecido pelo trabalho nas franquias de animação Rio e A Era do Gelo), estrelado por Rodrigo Santoro e Bruna Linzmeyer como um casal de bailarinos, apoia-se inteiramente no clichê da grande oportunidade de trabalho que, oferecida a apenas uma das partes da dupla, cria uma fissura na relação, funcionando moderadamente graças à forma como o número de balé desempenhado pelo casal e a tentativa de conciliação são entrelaçados.

Vincent Cassel no segmento "A Musa" de RIO, EU TE AMO

Quase excluído do corte final em decorrência de burocracias envolvendo os direitos de uso de imagem do Cristo Redentor, o curta de José Padilha é uma das grandes decepções da antologia: com Wagner Moura no papel de um homem que decide arejar a cabeça voando de asa delta pelo céu carioca, o episódio é repleto de lacunas e deixa o público tão no ar quanto o personagem, criando um sentimento inapropriado de incompletude. Aliás, a resolução é o que quase compromete o trabalho de Andrucha Waddington, que, reprisando diversas parcerias (Eduardo Sterblitch e Stepan Nercessian, de Os Penetras, Regina Casé, de Eu Tu Eles, e a sogra Fernanda Montenegro, de Casa de Areia), dá a seu pequeno conto uma amarração doce e catártica, mas um tantinho insatisfatória e abrupta – nada que a atuação impecável da sempre magnífica Fernanda Montenegro, no papel de uma moradora de rua idosa, não consiga abafar.

Por outro lado, embora também conte com um final aberto, a contribuição de Guillermo Arriaga é uma das mais interessantes: ambientado em cenários hostis e desesperançosos e povoado por personagens sofridos e miseráveis – marcas registradas do trabalho do mexicano como roteirista (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) -, "Texas" é, de longe, o episódio mais soturno do longa, conduzindo o casal vivido por Land Vieira e Laura Neiva através de um delicado dilema cuja resolução, em uma decisão acertada, é omitida do público. E enquanto Fernando Meirelles desenvolve um interessante, divertido e atraente exercício de estilo em um dos cenários mais emblemáticos da capital fluminense – o calçadão de pedras portuguesas em formato de ondas -, Nadine Labaki oferece aquele que talvez seja o mais adorável e arrebatador trecho da coletânea, mesmo contendo uma evidente veia manipuladora: em "O Milagre", a cineasta libanesa lança luz sobre a inocência da infância como uma força motriz da vida desprovida de luxo e por vezes sofrida de crianças carentes, apresentando ao público o incrível, jovem e espontâneo Cauã Antunes no papel de um garoto que monta guarda diante de um telefone público esperando uma ligação importantíssima de Jesus Cristo em pessoa.

Por fim, os trabalhos de Paolo Sorrentino e Stephan Elliott, mesmo contando com presenças internacionais como Emily Mortimer e Ryan Kwanten, não conseguem causar impressões muito fortes, ao passo que o casinho desenvolvido nas transições, sob o comando de Vicente Amorim, faz bem o serviço de sugerir que aquelas histórias coexistem em um mesmo espaço-tempo. No mais, Rio, Eu Te Amo acaba se estabelecendo como um passatempo mediano em que tanto os méritos quanto os deméritos acabam sendo diluídos em meio aos vários altos e baixos e à avalanche de rostos conhecidos.

Nadine Labaki e Harvey Keitel no segmento "O Milagre" de RIO, EU TE AMO

23 de julho de 2014

Crítica | Planeta dos Macacos: O Confronto

Andy Serkis em PLANETA DOS MACACOS: O CONFRONTO (Dawn of the Planet of the Apes)

★★★★

Dawn of the Planet of the Apes, EUA, 2014 | Duração: 2h10 | Lançado no Brasil em 24 de Julho de 2014, nos cinemas | Baseado no romance de Pierre Boulle e nos personagens de Rick Jaffa & Amanda Silver. Roteiro de Mark Bomback e Rick Jaffa & Amanda Silver | Dirigido por Matt Reeves | Com Andy Serkis, Jason Clarke, Gary Oldman, Keri Russell, Toby Kebbell, Kodi Smit-McPhee, Kirk Acevedo.

Por mais que os humanos e os símios de Planeta dos Macacos: O Confronto pareçam dividir equivalentes habilidades mentais, há algumas diferenças básicas e claras que separam os dois grupos: os primatas, em particular, surgem como seres em fase de adaptação aos avanços cognitivos conquistados no filme anterior (apenas uma década se passou desde que pesquisas de combate ao Mal de Alzheimer conferiram inteligência e lucidez a suas cobaias) e que se organizam em comunidade de forma ainda bastante rudimentar, preservando costumes de sua predecessora fase selvagem. Por essa razão, é suficientemente tolerável que o macaco com tendências psicopatas Koba (Toby Kebbell) desencadeie uma grande intriga a partir de motivações extremamente primitivas – o que não pode ser dito, por outro lado, sobre a contribuição do humano e imbecil Carver (Kirk Acevedo) para os conflitos, já que tamanha estupidez vindo de uma espécie dominante e supostamente evoluída não é tão fácil de engolir assim.

Escrito por Mark Bomback e pelos mesmos Rick Jaffa e Amanda Silver de Planeta dos Macacos: A Origem, O Confronto avança 10 anos em relação ao filme anterior e nos leva a um cenário pós-apocalíptico em que boa parte da humanidade foi dizimada por uma implacável gripe símia. Durante uma expedição motivada pela existência de uma usina hidrelétrica desativada nas redondezas, um pequeno grupo de humanos imunes à doença e oriundos de uma comunidade sitiada de São Francisco acaba entrando no território do bando de primatas liderado pelo pioneiro Cesar (Andy Serkis) e afetando a harmonia daquela população. A rispidez do encontro (contribuição, como não poderia deixar de ser, do tal Carver, um babaca confesso), porém, altera os ânimos de ambos os grupos: de um lado, os macacos prometem uma resposta violenta caso seu território seja invadido novamente pelos humanos, que por sua vez planejam secretamente um genocídio caso os símios dificultem o acesso de técnicos à tal usina, que promete solucionar os problemas energéticos daquela comunidade.

Dirigido por Matt Reeves (Cloverfield – Monstro, Deixe-me Entrar), Planeta dos Macacos: O Confronto conta com um dos piores usos de 3D da safra recente: embora tenha sido rodado originalmente com a tecnologia, o filme não possui um plano sequer cujo efeito tridimensional chame particularmente a atenção – fruto das escolhas equivocadas (considerando exclusivamente o 3D) de Reeves, que adota uma profundidade de campo pequena, mantendo e alterando o foco entre seus personagens em boa parte da projeção. Por outro lado, as decisões narrativas do cineasta são felizes em sua maioria: é extremamente estimulante que uma surperprodução desse porte ouse adotar um ritmo mais lento e dar atenção especial ao desenvolvimento da trama, em vez de submeter o espectador à histeria e ao frenesi de sequências de ação excessivas e constantes. Da mesma forma, as discussões temáticas oferecidas pela premissa da franquia também não são deixadas de lado pelo roteiro, como, por exemplo, ao destacar a importância da comunicação e da empatia como contrabalanceamento à racionalidade.

Jason Clarke e Andy Serkis em PLANETA DOS MACACOS: O CONFRONTO (Dawn of the Planet of the Apes)

Tecnicamente, como não poderia deixar de ser, Planeta dos Macacos: O Confronto é ainda mais interessante e eficiente que o filme anterior: com raras exceções, os modelos digitais dos primatas são incrivelmente realistas, movem-se com absoluta fluidez e exibem uma gama de expressões coerente com a proposta da produção. Nesse sentido, seria injusto economizar elogios ao trabalho de Andy Serkis, cujas sutilezas são registradas com perfeição pelo performance capture e transformam Cesar na incontestável figura mais interessante em cena. Favorecendo o investimento financeiro nos aspectos técnicos, o elenco é notavelmente econômico, desde a escolha do ascendente Jason Clarke para o papel humano principal até a participação do veterano Gary Oldman, que, pela milésima vez (a segunda apenas nesse ano, como RoboCop não me deixa mentir), dá vida a uma figura de autoridade secundária sujeita a grandes doses de pressão.

Desperdiçando eventualmente alguns minutos com a irrelevante relação familiar do trio vivido por Jason Clarke, Keri Russell e Kodi Smit-McPhee, Planeta dos Macacos: O Confronto sequer promove um avanço muito expressivo no arco geral da franquia, mas é bastante eficaz e cuidadoso em suas singelas passadas – e, se a sorte continuar a nosso favor, podemos esperar muita coisa boa do que ainda está por vir.

Toby Kebbell em PLANETA DOS MACACOS: O CONFRONTO (Dawn of the Planet of the Apes)

16 de julho de 2014

Crítica | Aviões 2: Heróis do Fogo ao Resgate

AVIÕES 2: HERÓIS DO FOGO AO RESGATE (Planes: Fire & Rescue)

★★★

Planes: Fire & Rescue, EUA, 2014 | Duração: 1h23 | Lançado no Brasil em 17 de Julho de 2014, nos cinemas | Baseado nos personagens de John Lasseter, Klay Hall e Jeffrey M. Howard. História de Bobs Gannaway e Jeffrey M. Howard. Roteiro de Jeffrey M. Howard | Dirigido por Bobs Gannaway | Com as vozes de Dane Cook, Ed Harris, Julie Bowen, Curtis Armstrong, John Michael Higgins, Hal Holbrook, Wes Studi, Brad Garrett, Teri Hatcher, Stacy Keach, Cedric the Entertainer, Jerry Stiller, Patrick Warburton e John Ratzenberger.

Pôster/capa/cartaz nacional de AVIÕES 2: HERÓIS DO FOGO AO RESGATE (Planes: Fire & Rescue)A animação Carros, de 2006, é tanto uma das menores bilheterias da Pixar quanto uma das mais lucrativas marcas desenvolvidas pelo estúdio, considerando o enorme sucesso da ampla variedade de produtos licenciados relacionados ao universo do filme. Aviões, de certa forma, é um deles: lançado nos cinemas há menos de um ano como uma produção desvinculada da Pixar, o longa claramente tentava lucrar em cima da criação de John Lasseter sem qualquer traço de ambição, estabelecendo "o mundo acima de Carros" como um esforço meramente oportunista e muitíssimo inferior à sua fonte de inspiração, mesmo reaproveitando vários de seus elementos. Por essa razão, é no mínimo surpreendente que uma produção tão tola e sem vida tenha ganhado uma continuação tão… razoável.

Produzido pela DisneyToon Studios (subdivisão da companhia do Mickey Mouse responsável por continuações de qualidade duvidosa de clássicos do estúdio e filmes derivativos como os da franquia Tinker Bell), o longa traz o ex-avião pulverizador Dusty Voo-Rasante tendo sua breve e apoteótica carreira como aeronave de corrida sendo interrompida por um defeito incorrigível na caixa de redução, mecanismo cujo modelo encontra-se fora de linha e, portanto, indisponível para substituição. Desobedecendo o conselho médico/mecânico de não exceder o limite de segurança estipulado para manobras arriscadas, Dusty acaba provocando um grande incêndio em um posto de combustível de Propwash Junction – o que chama a atenção das autoridades para a falta de preparo e estrutura do departamento de bombeiros da localidade. Assim, o protagonista se dispõe a ser treinado e equipado para se tornar um SEAT (sigla em inglês para aviões usados no combate às chamas), de modo a cumprir as metas estipuladas para que o aeroporto da cidade seja reaberto e o tradicional Festival do Milho não seja cancelado.

Escrito por Jeffrey M. Howard e pelo diretor Bobs Gannaway, o roteiro certamente não é o ponto alto do projeto: como era de se esperar, Dusty é alvo de desdém por parte dos experientes membros da companhia de combate a incêndios do Parque Nacional Pico Pistão até conseguir provar seu valor e conquistar a confiança do grupo – e também não é nenhuma surpresa que o rígido e exigente líder da equipe, o Patrulheiro Blade, possua um passado obscuro e seja particularmente desconfiado e rigoroso com o protagonista, selando a batida relação entre tutor e aprendiz que já havia sido desenvolvida de forma bem parecida tanto no filme anterior quanto em Carros. Da mesma forma, é frustrante notar como os roteiristas usam uma subtrama absolutamente deslocada envolvendo um casal de trailers como distração para a grande crise do terceiro ato, cuja difícil e desafiadora resolução não é revelada para o público.

AVIÕES 2: HERÓIS DO FOGO AO RESGATE (Planes: Fire & Rescue)

Todavia, o roteiro é redondinho, coeso e enxuto o suficiente para não aborrecer: os constantes reforços do heroísmo de Dusty são bem mais toleráveis que a trama do underdog em competição desenvolvida pelo filme anterior, por exemplo. Além disso, Aviões 2 parece o projeto mais cinematográfico do renegado DisneyToon, a começar pela decisão de apresentar o filme em Cinemascope (formato de tela mais largo, na proporção 2.35:1), mais simpático às telonas do que às telinhas. Da mesma forma, a qualidade técnica não deixa nada a desejar em relação a outras produções animadas da Disney, ao passo que a direção de Gannaway é surpreendentemente segura, competente e repleta de decisões acertadas, como simular câmera na mão em sequências de ação ou abafar o áudio em cenas de grande risco e tensão.

Por fim, é praticamente impossível falar sobre Aviões 2 sem abordar o trabalho de dublagem da versão brasileira – um dos mais embaraçoso a que já fui exposto. Antes de mais nada, a participação de Tatá Werneck não chega a incomodar ou comprometer, já que a personagem possui um papel secundário irrelevante e sua personalidade avoada combina com o jeito espevitado da comediante. Porém, o grande erro da distribuidora foi, sem sombra de dúvida, a contratação de Gregório Duvivier para auxiliar na inserção de piadas e outras linhas engraçadinhas compatíveis com o humor brasileiro no roteiro da dublagem – e embora o comediante seja um roteirista talentoso, o resultado é uma salada de frutas vergonhosa de referências anacrônicas e ilógicas, que inclui menções ao Rei do Camarote, diversas linhas do funk Beijinho no Ombro e o uso esquizofrênico de expressões e bordões como "Sabe de nada, inocente!", Zap Zap e "Cada mergulho é um flash". Para se ter ideia, quando um sofisticado hotel para carros e aviões precisa ser evacuado às pressas em decorrência de um incêndio florestal a certa altura da narrativa, o presunçoso e inconsequente proprietário do estabelecimento tenta impedir que seus hóspedes abandonem o edifício com um "Keep calm e deixa de recalque", o que não faz o menor sentido e não é, em nenhum nível, uma tirada minimamente engraçada.

Decisões como essa, que soam como esforços desesperados para atrair publicidade para o lançamento (enquanto, na verdade, se sujeitam ao risco de até mesmo afastar o público), são dignas de pena, já que Aviões 2 é surpreendentemente bom para a sequência apressada de um filme tão derivativo.

AVIÕES 2: HERÓIS DO FOGO AO RESGATE (Planes: Fire & Rescue)

Crítica | Juntos e Misturados

Drew Barrymore e Adam Sandler em JUNTOS E MISTURADOS (Blended)


Blended, EUA, 2014 | Duração: 1h57 | Lançado no Brasil em 17 de Julho de 2014, nos cinemas | Escrito por Ivan Menchell e Clare Sera | Dirigido por Frank Coraci | Com Adam Sandler, Drew Barrymore, Kevin Nealon, Terry Crews, Wendi McLendon-Covey, Emma Fuhrmann, Bella Thorne, Braxton Beckham, Alyvia Alyn Lind, Joel McHale, Abdoulaye NGom, Kyle Red Silverstein, Zak Henri e Shaquille O'Neal.

Pôster/capa/cartaz nacional de JUNTOS E MISTURADOS (Blended)
Custo a acreditar que os produtores de Juntos e Misturados não conseguiram captar a ironia contida no título do filme. Fazendo referência às novas famílias formadas a partir da união entre pais solteiros, divorciados ou viúvos e às eventuais dificuldades de conciliar idades, gostos e personalidades de padrastos, madrastas e enteados, o título também parece comentar a natureza do próprio roteiro, que tenta reunir cacos e retalhos de outras produções prévias, incluindo, naturalmente, algumas estreladas pelo próprio Adam Sandler - e diferentemente do modus operandi água-com-açúcar das narrativas comumente escolhidas pelo comediante, o casamento dos vários elementos reciclados aqui não é particularmente feliz.

Escrito por Ivan Menchell e Clare Sera, Juntos e Misturados parece uma espécie de refilmagem disfarçada de Esposa de Mentirinha, que o próprio Sandler estrelou e lançou há pouquíssimas primaveras. No filme, Jim (Sandler) é um pai viúvo e Lauren (Drew Barrymore) é uma mãe divorciada que se conhecem em um encontro às cegas desastroso e que, graças a circunstâncias absurdas que me recuso a descrever aqui, acabam viajando para o mesmo resort de luxo na África do Sul e são encarados constante e erroneamente pelos funcionários e hóspedes como uma família do tipo apontado pelo título do filme. Nesse contexto, Lauren acaba preenchendo involuntariamente o vácuo deixado pela ausência de uma figura materna na vida das filhas de Jim, que por sua vez desenvolve uma inesperada afinidade com os filhos da mulher – o que naturalmente estreita os laços da dupla.

Abraçando sem qualquer tipo de pudor a antiquada dinâmica do casal que briga, mas no fundo se ama, o roteiro é esquemático ao extremo: cada um dos sete personagens principais (os dois adultos e as cinco crianças) possui um traço singular de personalidade que precisa ser trabalhado antes que os créditos finais invadam a tela. Assim, os complexos de vaidade da jovem Hilary (Bella Thorne) ou a dificuldade de rebater bolas de beisebol do garoto Tyler (Kyle Red Silverstein), por exemplo, dão abertura para que posteriormente, como todos somos capazes de prever, vejamos a garota desfilando com um visual deslumbrante e o rapaz realizando um home run em uma partida importante. Além disso, o fato de as crianças serem sempre ajudados pelo desafeto de seus respectivos pais é uma estratégia extremamente óbvia e previsível para reforçar o potencial contido na esperada união entre Jim e Lauren, manipulando as emoções do público de forma rasteira.

Adam Sandler em JUNTOS E MISTURADOS (Blended)

Dirigido por Frank Coraci (do razoável Click e do detestável O Zelador Animal), o filme é consideravelmente menos ofensivo do que o esperado de uma produção da Happy Madison – o que talvez explique por que as tentativas de humor são mais esparsas e extremamente desajeitadas e ineficazes, a seu próprio modo. Embora encarne sua persona adolescente e imatura de sempre, Sandler parece enxergar o peso da idade e surge mais contido que o habitual, preterindo grosserias sexuais e escatológicas (que estão lá, claro, mas em menor quantidade) a favor da ênfase na importância dos vínculos familiares (o que culmina em uma canção que, executada nos créditos finais, é interpretada por Sandler e suas filhas da vida real e conta com comentários engraçadinhos sobre a rotina da família, numa decisão surpreendentemente simpática do comediante).

Como também era de se esperar, Juntos e Misturados é repleto de personagens secundários excêntricos que, surpreendentemente, conseguem divertir em uma ou outra oportunidade – com destaque para o grupo musical Thathoo, que, liderado pelo sempre exaltado personagem de Terry Crews, surge inesperadamente em ocasiões das mais inoportunas. Por outro lado, o conflito que é criado e desenvolvido no terceiro ato revela-se uma indiscutível afronta à inteligência do público – que, curiosamente, tem comparecido menos aos cinemas para conferir a produção; Juntos e Misturados já é uma das bilheterias menos expressivas da carreira de Sandler.

Parece que nem mesmo apostar em fórmulas já testadas – sejam as diversas convenções abraçadas pelo roteiro ou mesmo o resgate da parceria com Drew Barrymore – está sendo suficiente para sustentar a manufatura de bobagens do comediante.

Terry Crews em JUNTOS E MISTURADOS (Blended)

7 de julho de 2014

Crítica | O Céu é de Verdade

Connor Corum em O CÉU É DE VERDADE (Heaven is for Real)


Heaven is for Real, EUA, 2014 | Duração: 1h39 | Lançado no Brasil em 3 de Julho de 2014, nos cinemas | Baseado no livro de Todd Burpo e Lynn Vincent. Roteiro de Randall Wallace e Christopher Parker | Dirigido por Randall Wallace | Com Greg Kinnear, Kelly Reilly, Connor Corum, Thomas Haden Church, Lane Styles e Margo Martindale.

Pôster/capa/cartaz nacional de O CÉU É DE VERDADE (Heaven is for Real)
A vinheta da TriStar Pictures nunca foi tão metalinguística quanto em O Céu é de Verdade: embora sirva para informar o público do envolvimento do estúdio na produção, a famosa e breve imagem de um feixe de luz quase etéreo surgindo entre nuvens e sendo interceptado por um gracioso cavalo alado pode ser encarada como uma cena já da própria narrativa, considerando que, após viver uma experiência de quase-morte, o garoto Colton Burpo (Connor Corum) alega ter dado um giro pelo Céu e constatado que Jesus, além de bom anfitrião e guia turístico, possui um cavalo.

Esta, claro, não é a mais incisiva das estratégias utilizada pelo filme para tentar provar seu ponto. Dirigido por Randall Wallace, O Céu é de Verdade faz questão de reforçar desde o início que a narrativa é baseada em uma história verídica – e acreditar no Céu com base nisso equivale a admitir que fantasmas existem após ter visto A Invocação do Mal, outro que alega se inspirar em eventos reais. Da mesma forma, a presença de indivíduos céticos sendo gradualmente convencidos por evidências supostamente irrefutáveis apresentadas pelo jovem Colton não é nenhuma novidade; na verdade, esta é a estratégia central do longa, já que o aparente clímax dramático da narrativa (extremamente frustrante, vale apontar) ocorre quando a mais incrédula das personagens finalmente é convencida pelo garoto.

Connor Corum e Greg Kinnear em O CÉU É DE VERDADE (Heaven is for Real)

Aliás, diferentemente de lixos repugnantes como o dramalhão religioso Corajosos, O Céu é de Verdade não traz qualquer pregação mais explícita e não comete o equívoco de demonizar descrentes ou ateus; ao invés disso, o filme chega até mesmo a articular um discurso de tolerância com adversidades e crenças (ou descrenças) alheias, o que é bastante positivo. Para completar, a produção chega bem perto de se desvincilhar de rótulos religiosos definitivos ao admitir, a certa altura, que acreditar ou não no Céu está vinculado à própria ideia que cada um possui a respeito do tema: em um discurso próximo ao desfecho, o pastor vivido por Greg Kinnear sugere que o Céu pode estar (breguice alert!) "no sorriso de uma criança", por exemplo.

Infelizmente, o filme peca por contrariar esta postura mais libertária ao tentar, até o último segundo, convencer o público da existência de um espaço metafísico transcendental para onde todas as boas almas vão após a morte. Além disso, o roteiro falha ao abandonar repentinamente certos conflitos (como as crescentes dificuldades financeiras da família Burpo foram superadas?) e por desperdiçar oportunidades de explorar temas interessantes e pertinentes, como a crueldade do sistema de saúde norte-americano.

Assim, O Céu é de Verdade se estabelece como um drama familiar aborrecido, monótomo e segregador de público, devendo funcionar apenas como reafirmação de crenças para aqueles que já as possuem – e se o interesse por um acaso for conferir Greg Kinnear em uma produção com temática religiosa, o mordaz e pouco conhecido E… Que Deus Nos Ajude!!! pode ser uma alternativa muito mais interessante e proveitosa.

Kelly Reilly e Connor Corum em O CÉU É DE VERDADE (Heaven is for Real)

26 de junho de 2014

Crítica | Amazônia

AMAZÔNIA


Amazonia, França/Brasil, 2013 | Duração: 1h23 | Lançado no Brasil em 26 de Junho de 2014, nos cinemas | Ideia original de Stéphane Millière e Luc Marescot. Roteiro de Johanne Bernard & Luiz Bolognesi & Louis-Paul Desanges & Luc Marescot & Thierry Ragobert | Dirigido por Thierry Ragober | Com as vozes de Lucio Mauro Filho e Isabelle Drummond.

Pôster/capa/cartaz nacional de AMAZÔNIA
O aspecto que mais deve ter dividido opiniões em relação ao vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2006, A Marcha dos Pinguins, é sua narração: em vez de descrever ou comentar os hábitos dos pinguins-imperadores, o voice over traduzia os supostos pensamentos daquelas aves em cada etapa da peregrinação anual exercida pela espécie – e mesmo incomodando pontualmente pelo excesso de humanização dos animais, a narração era suficientemente didática e impessoal para se justificar e alcançar os objetivos do projeto. Infelizmente, o mesmo equilíbrio não é alcançado por Amazônia: transitando erroneamente entre documentário e aventura infantil, a co-produção franco-brasileira falha miseravelmente em ambos os esforços.

Escrito por um total absurdo de seis profissionais, o filme acompanha o macaco-prego domesticado Castanha (voz de Lúcio Mauro Filho) tentando sobreviver e se adaptar à vida selvagem da floresta amazônica depois de sofrer um acidente de avião a caminho do circo que o teria como nova atração. Com isso, o longa se encarrega de expor as belezas da maior floresta tropical do mundo enquanto submete seu protagonista a situações risíveis, incluindo perigos tolos, um romance absolutamente aborrecido e clichês que beiram o inacreditável (sim, os realizadores conseguem a proeza de incluir até mesmo uma cena em que um personagem desaparece da vista de outro depois que um veículo passa entre ambos).

Incapaz de oferecer uma justificativa narrativa decente para a apreciação da deslumbrante fauna daquele ecossistema (o que não seria necessário caso o filme se assumisse como um documentário legítimo), Amazônia obriga Castanha a repetir insistentemente falas como "Que que é isso?" ou "Caramba! Olha só esse..." e, em seguida, descrever o que está observando toda vez que o diretor Thierry Ragobert decide apresentar um novo animal, planta ou fenômeno natural ao público, o que rapidamente se torna algo irritante. Além disso, com exceção de um ou outro pensamento mais interessante e educativo (“Até os [animais] nojentos são bonitos se a gente olhar direito”), as falas escritas por José Roberto Torero contam com um humor raso que só deve funcionar para crianças muito novas, pecando ainda por tecer comentários presunçosos sobre o uso da tecnologia 3D (mesmo erro cometido pelo patético Brasil Animado, alegadamente o primeiro filme brasileiro lançado em 3D).

AMAZÔNIA

O efeito tridimensional, vale apontar, é bastante irregular: sim, há belíssimas imagens (especialmente em planos mais abertos) cuja profundidade contribui imensamente para a apreciação daquelas paisagens, mas os vários planos-detalhe e a necessidade recorrente do uso de zoom e teleobjetivas (já que a proximidade da câmera pode influenciar o comportamento dos animais ou ameaçar a segurança da equipe) praticamente anulam o efeito 3D em boa parte da projeção. Para completar, a trilha sonora é utilizada de forma óbvia e inoportuna para reforçar os vários perigos enfrentados por Castanha – e não fosse a inclusão de um comentário breve (e bastante ingênuo) sobre a "lei da selva" (isto é, a existência da cadeia alimentar), o filme ainda ignoraria, como de costume, que predadores como onças, gaviões, urubus e crocodilos não são vilões da natureza, mas seres com necessidade próprias a serem cumpridas em prol da sobrevivência e da perpetuação de suas espécies.

Por essas e outras, Amazônia se torna frágil e insípido como aventura e demasiadamente pouco informativo como documentário, estabelecendo-se como um primo não muito distante do horroroso Caminhando Com Dinossauros – com a diferença que a biodiversidade da floresta amazônica é muito mais bela e inebriante que as criaturas digitais jurássicas criadas pela companhia de efeitos especiais Animal Logic.

AMAZÔNIA

Crítica | Jersey Boys: Em Busca da Música

John Lloyd Young, Erich Bergen, Vincent Piazza e Michael Lomenda em JERSEY BOYS: EM BUSCA DA MÚSICA (Jersey Boys)

★★★

Jersey Boys, EUA, 2014 | Duração: 2h14 | Lançado no Brasil em 26 de Junho de 2014, nos cinemas | Baseado no livro de Marshall Brickman & Rick Elice. Roteiro de Marshall Brickman & Rick Elice | Dirigido por Clint Eastwood | Com John LLoyd Young, Erich Bergen, Michael Lomenda, Vincent Piazza e Christopher Walken.

Pôster/capa/cartaz nacional de JERSEY BOYS: EM BUSCA DA MÚSICA (Jersey Boys)
Anonimato. Ascensão. Sucesso. Queda. Redenção. São esses os elementos fundamentais que, com pequenas variações, definem a estrutura da grande maioria das cinebiografias musicais – e essa recorrência é justamente o principal fator responsável pelo razoável desgaste do subgênero. Ser baseado em fatos reais ou apresentar uma história com altos e baixos expressivos não é mais suficiente para se produzir uma cinebiografia de respeito; é preciso algum diferencial, por menor que seja.

Baseado no livro musical de Marshall Brickman e Rick Elice e em sua respectiva adaptação teatral, Jersey Boys: Em Busca da Música consegue se safar graças, essencialmente, às boas atuações do elenco e à forma como alguns dos dramas e conflitos dos personagens são trabalhados. Abrangendo um período que vai do início da década de 50 e culmina na chegada dos anos 90, o filme apresenta a trajetória do quarteto de artistas que, antes jovens delinquentes e músicos amadores, são alçados à fama quase uma década após se unirem como um grupo pela primeira vez. Igualmente veloz, porém, é a eventual ruína da The Four Seasons, motivada tanto por desentendimentos entre os integrantes quanto por uma dívida graúda com mafiosos acumulada por um deles.

Dirigido pelo cineasta veterano Clint Eastwood, Jersey Boys importa alguns elementos evidentes do espetáculo teatral: com exceção do vibrante número musical que encerra o longa, a influência que mais chama atenção é a narração, que promove a quebra da quarta parede ao exibir os próprios personagens se dirigindo ao público para acrescentar informações implícitas ou omissas. Embora cause certa estranheza (inofensiva, no final das contas), as mudanças de narradores que ocorrem ao longo da narrativa acabam refletindo a natureza de cada etapa da trajetória (o narrador da fase mais imatura e inconsequente do grupo, por exemplo, é justamente o integrante que compartilha dessas características) – e, para completar, há uma certa beleza na participação de Fankie Valli (John Lloyd Young) neste rodízio, já que o vocalista principal do conjunto é o último a assumir a função e não chega a dirigir palavras ao público, embora os olhares que lança para a câmera em dois momentos emblemáticos do terceiro ato narrem com eficiência emoções que não precisam ser verbalizadas ou explicitadas.

Vincent Piazza, Erich Bergen, John Lloyd Young e Michael Lomenda em JERSEY BOYS: EM BUSCA DA MÚSICA (Jersey Boys)

As atuações, vale reforçar, são o principal mérito do projeto: vencedor do Tony Award pela performance no espetáculo teatral em sua formação original, John Lloyd Young assume o comando do elenco com a segurança esperada de alguém que já reprisou o papel dezenas de vezes no palco e encarna com talento as distintas fases do personagem, mesmo sendo obrigado a, no auge dos seus trinta e tantos anos de idade, assumir também a versão adolescente de Valli. Já o estreante Michael Lomenda, no papel de Nick Massi, surge como o único elo fraco do quarteto principal, ao passo que Erich Bergen representa com competência a evolução e o amadurecimento do centrado compositor Bob Gaudio. Por fim, Vincent Piazza transforma Tommy DeVito em um sujeito instável, explosivo e naturalmente autodestrutivo, enquanto o veterano Christopher Walken rouba todas as cenas de que participa como o curiosamente divertido mafioso Gyp DeCarlo.

O roteiro, por outro lado, não merece muitos elogios. Embora mereça reconhecimento por plantar certas pistas que são retomadas em momentos posteriores oportunos (como o hábito de DeVito de urinar na pia, que é apresentado discretamente ao público muito antes de se tornar uma queixa de um dos companheiros), o texto acaba se rendendo à convenção de transformar as ideias originárias de grandes hits ou até mesmo a escolha do nome The Four Seasons em pequenas epifanias, o que provavelmente não deve ter acontecido na prática. Para completar, a maquiagem utilizada para envelhecer os personagens em determinada passagem é bastante irregular: o trabalho feito em Vincent Piazza, por exemplo, é muitíssimo mais eficiente do que o executado em John Lloyd Young.

Contando ainda com um estranho, aparente e isolado impulso narcisista de Clint Eastwood (um televisor exibindo uma cena do seriado Rawhide, estrelado pelo cineasta, pode ser visto em determinado momento), Jersey Boys: Em Busca da Música é uma produção bastante... aceitável – e este definitivamente não é o melhor elogio que um filme pode receber.

Vincent Piazza, Christopher Walken, Donnie Kehr e Erich Bergen em JERSEY BOYS: EM BUSCA DA MÚSICA (Jersey Boys)

18 de junho de 2014

Crítica | Transcendence - A Revolução

Morgan Freeman, Cillian Murphy, Rebecca Hall e Johnny Depp em TRANSCENDENCE - A REVOLUÇÃO (Transcendence)

★★

Transcendence, Reino Unido/China/EUA, 2014 | Duração: 1h59 | Lançado no Brasil em 19 de Junho de 2014, nos cinemas | Escrito por Jack Paglen | Dirigido por Wally Pfister | Com Johnny Depp, Rebecca Hall, Paul Bettany, Cillian Murphy, Morgan Freeman, Kate Mara, Cole Hauser e Clifton Collins Jr.

Pôster/capa/cartaz nacional de TRANSCENDENCE - A REVOLUÇÃO (Transcendence)
O Exterminador do Futuro, Ameaça Invisível – Stealth, Robocop – O Policial do Futuro, Controle Absoluto, TRON – Uma Odisseia Eletrônica, Matrix e Eu, Robô. Caso a personagem de Rebecca Hall tivesse assistido a qualquer um desses filmes e compartilhasse minimamente dos temores que a sociedade vem alimentando ao longo de décadas em relação aos limites cognitivos de componentes eletrônicos, Transcendence – A Revolução provavelmente jamais teria existido. Mas não: no roteiro do estreante Jack Plagen, Evelyn Caster (Hall) é uma pesquisadora que, por amor ao cientista da computação Will Caster (Johnny Depp) e sem temer as consequências de um procedimento ambicioso nunca antes realizado com um humano, faz o arriscado upload da consciência do marido moribundo para um sofisticado módulo de inteligência artificial – o que acaba transformando Transcendence em uma mistura inusitada e inoportuna de qualquer um dos filmes citados no início deste parágrafo com Ela, Os Invasores de Corpos e Romeu e Julieta.

Estreia do diretor de fotografia Wally Pfister (colaborador fiel de Christopher Nolan, que aqui apenas produz) como cineasta, Transcendence é um verdadeiro repositório de influências do diretor que impulsionou sua carreira – a começar pelo elenco, que traz figuras como Cillian Murphy, Morgan Freeman (ambos da trilogia Batman) e Rebecca Hall (O Grande Truque). Em termos de identidade visual, paira a dúvida quanto à origem das influências (seriam os planos aéreos, por exemplo, uma contribuição de Pfister como cinegrafista à estética da obra de Nolan, ou o contrário?), ao passo que a cadência da montagem de David Rosebloom, pelo menos no que diz respeito às sequências que abrem e fecham a narrativa, remete fortemente ao belo trabalho de Lee Smith em A Origem. Pra completar, nem Mychael Danna consegue escapar das comparações: a trilha sonora mais parece composta por um Hans Zimmer bêbado e entediado com a tarefa de produzir a mesmíssima partitura pela milionésima vez.

Rebecca Hall e Johnny Depp em TRANSCENDENCE - A REVOLUÇÃO (Transcendence)

Em uma posição diametralmente oposta à de Evelyn, o grupo terrorista liderado pela jovem Bree (Kate Mara) parece ter assistido a ficções científicas demais e alimentado um pavor descontrolado em relação a qualquer tipo de inteligência artificial – e o bando até representaria um excelente contraponto às ideologias questionáveis dos cientistas caso as motivações por trás dos ataques ficassem mais claras e seus integrantes não parecessem meros psicopatas desvairados, fechados a qualquer tipo de negociação. Aliás, Transcendence provavelmente também não existiria caso seus personagens compreendessem o conceito básico de diálogo: em momento algum o FBI, representado pelo agente Buchanan (Cillian Murphy), parece interessado ou até mesmo disposto a ouvir e tentar compreender de fato os propósitos da companhia fundada e comandada pela Inteligência Artificial cuja consciência provém do então falecido Dr. Will, o que poderia evitar a maior parte dos (ou até todos os) conflitos.

Desperdiçando dezenas de chances de discutir as questões éticas e morais que rodeiam os protótipos de Inteligência Artificial e nanotecnologia apresentados, o filme também ousa subestimar a inteligência do espectador em algumas situações: quando a narrativa salta dois anos, por exemplo, vemos a versão computadorizada de Will Caster detalhando certas pesquisas para Evelyn, o que não faz o menor sentido, já que a mulher obviamente esteve nas instalações acompanhando o processo durante todo aquele tempo (as explicações são, na verdade, endereçadas ao público). Além disso, o filme conta com um ou outro plano absolutamente aleatório e dispensável, cujo propósito não vai além do exibicionismo estético fajuto – como a imagem em câmera lenta de uma poça d’água sendo perturbada pela roda de uma caminhonete. Para completar, as sequências de ação são insossas e, em última instância, desnecessárias, o que naturalmente compromete a produção.

Prejudicado ainda por um desfecho tolo em múltiplos níveis e por uma galeria de personagens mais inchada do que o ideal, Transcendence – A Revolução é um claro e lamentável desperdício de talentos que, em suas funções prioritárias ou nos projetos certos, já nos proporcionaram bem mais diversão e muito menos aborrecimento.

Morgan Freeman, Cillian Murphy e Rebecca Hall em TRANSCENDENCE - A REVOLUÇÃO (Transcendence)

17 de junho de 2014

Crítica | Vizinhos

Zac Efron, Seth Rogen e Rose Byrne em VIZINHOS (Neighbors)

★★★

Neighbors, EUA, 2014 | Duração: 1h37 | Lançado no Brasil em 19 de junho de 2014, nos cinemas | Escrito por Andrew Jay Cohen & Brendan O'Brien | Dirigido por Nicholas Stoller | Com Seth Rogen, Rose Byrne, Zac Efron, Dave Franco, Carla Gallo, Christopher Mintz-Plasse, Halston Sage, Craig Roberts, Jerrod Carmichael, Jake Johnson e Lisa Kudrow.

Pôster/capa/cartaz nacional de VIZINHOS (Neighbors)
Embora a carreira do produtor Judd Apatow (O Virgem de 40 Anos, Segurando as Pontas, Ligeiramente Grávidos) não esteja atravessando sua melhor fase, o impulso dado por ele às comédias escrachadas centradas em personagens "adultescentes" e as parcerias estabelecidas no processo continuam a gerar sua parcela de frutos positivos, como o recente e divertido É O Fim, projeto assinado por Seth Rogen e Evan Goldberg (roteiristas de Superbad – É Hoje). Dando sequência a uma trajetória até então apadrinhada por Apatow e apresentada ao púbico brasileiro exclusivamente em home video (Ressaca de Amor, O Pior Trabalho do Mundo e Cinco Anos de Noivado), o cineasta Nicholas Stoller finalmente consegue, com Vizinhos, a repercussão internacional e o retorno financeiro necessários para ganhar as telonas brasileiras.

Escrita pela dupla de estreantes Andrew Jay Cohen e Brendan O’Brien, a comédia gira em torno da vida de casados de Mac (Seth Rogen) e Kelly Radner (Rose Byrne), que passa a ser atormentada quando a fraternidade ΨΔΒ, presidida pelo atraente Teddy Sanders (Zac Efron), muda-se para a até então tranquila vizinhança. Preocupado com a saúde da filha bebê Stella (vivida pelas absolutamente adoráveis Elise e Zoey Vargas), o casal se vê obrigado a travar uma guerra contra o grupo de estudantes depois que as primeiras negociações de paz são infringidas por festas que abusam dos decibéis noite adentro.

Preso a uma estrutura que, essencialmente, oscila entre as provocações e os esforços exercidos por cada lado na disputa, o longa é povoado por personagens imaturos e egoístas cuja estupidez pelo menos abre espaço para boas risadas. Assim, o grande acerto do filme consiste justamente na disposição de rir das próprias limitações e idiotices: seria particularmente frustrante, por exemplo, ver Teddy derrubando com facilidade a veracidade de determinado documento caso a explicação dada pelo autor da farsa não debochasse dessa situação-clichê de forma tão hilária. Da mesma forma, a trilha de Michael Andrews é jocosa e certeira ao conferir, por exemplo, grandiosidade a eventuais ideias estúpidas dos estudantes ou um caráter quase etéreo a certa habilidade genital exótica do vice-presidente da fraternidade, Pete (Dave Franco).

Zac Efron em VIZINHOS (Neighbors)

Por outro lado, a volatilidade do personagem de Zac Efron, em vez de torná-lo uma figura complexa, soa como mero resultado dos pequenos surtos de arbitrariedade do roteiro, que altera o comportamento de Teddy conforme as necessidades imediatas da narrativa: repare, por exemplo, como a compreensão e a generosidade do presidente com determinado calouro contrariam a conduta assumida por ele na maior parte do tempo, já que essa postura benevolente só era interessante para aquela situação específica. Ainda assim, vale apontar que o bromance vivido pelos personagens de Efron e Franco possui sua parcela de méritos e se estabelece como a única subtrama com um desenvolvimento mais cuidadoso e marcante (já que os problemas conjugais de Mac e Kelly, por exemplo, beiram o risível). Para completar, Lisa Kudrow (a Phoebe de Friends) acerta o tom como uma reitora caracterizada por uma divertida fixação com manchetes jornalísticas, ao passo que Rose Byrne volta a demonstrar bastante conforto em um papel cômico enquanto divide cena com Seth Rogen, interpretando Seth Rogen como só Seth Rogen é capaz de fazer (ou talvez Kevin James, como um dos diálogos mais divertidos do filme parece sugerir).

É lamentável, portanto, que a obra acabe sendo comprometida por um tropeço da equipe na reta final da projeção: a opção do roteiro de se abster de qualquer tipo de problematização em torno da resolução do grande conflito da trama torna o desfecho apressado, anticlimático e insatisfatório, enviando o espectador para fora da sessão com uma sensação inesperada de incompletude – que nem a overdose de fofura ofertada pelas gêmeas Elise e Zoey Vargas durante os créditos finais é capaz de curar.

Zac Efron, Dave Franco, Christopher Mintz-Plasse e Jerrod Carmichael em VIZINHOS (Neighbors)