30 de janeiro de 2013

Crítica | Os Miseráveis

Hugh Jackman em OS MISERÁVEIS (Les Miserábles)

por Eduardo Monteiro

Les Misérables, Reino Unido, 2012 | Duração: 2h37m54s | Lançado no Brasil em 1º de Fevereiro de 2013, nos cinemas | Baseado na peça musical original de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg. Roteiro de William Nicholson, Alain Boublil, Claude-Michel Schönberg e Herbert Kretzmer | Dirigido por Tom Hooper | Com Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Eddie Redmayne, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Aaron Tveit, Samantha Barks, Daniel Huttlestone, Colm Wilkinson, Isabelle Allen.

Pôster nacional e crítica de OS MISERÁVEIS (Les Miserábles)
Publicado há mais de um século e meio, Os Miseráveis, de Victor Hugo, é uma das grandes obras da literatura mundial e já foi adaptado dezenas de vezes para o cinema (a mais recente delas, salvo engano, está pra completar quinze anos e trazia Liam Neeson, Geoffrey Rush, Uma Thurman e Claire Danes nos papéis principais). No teatro, em 1980, a obra ganhou uma versão musical composta por Claude-Michel Schönberg e letrada por Alain Boublil que, poucos anos mais tarde, veio a ser adaptada para os palcos londrinos sob a tutela do produtor Cameron Mackintosh e do letrista Herbert Kretzmer. Agora, Mackintosh produz a versão cinematográfica do musical, em uma manobra ousada e arriscada: se uma expressiva fatia do público de Cinema já rejeita musicais em que os personagens param para cantar a cada cinco minutos, o que dizer de um filme em que eles não param de cantar por cinco minutos sequer?

Cento e cinquenta minutos de cantoria quase ininterrupta é o que aguarda o espectador que se aventurar em uma sessão desta nova versão da história clássica, dessa vez comandada por Tom Hooper (O Discurso do Rei, Maldito Futebol Clube). No roteiro, escrito por William Nicholson com base na peça musical, Jean Valjean (Hugh Jackman) é um ex-prisioneiro que, um quarto de século após o início da Revolução Francesa, é libertado em condicional após cumprir dezenove anos de pena pelo roubo de um pão para saciar a fome da irmã e dos sobrinhos. Depois de enfrentar dificuldades para se reintegrar à sociedade, Valjean se estabelece como proprietário de uma fábrica e compadece pela história de uma das operárias, a miserável Fantine (Anne Hathaway), que, no leito de morte, pede que o homem encontre e cuide de sua filha, Cosette (vivida por Isabelle Allen e Amanda Seyfried em épocas distintas). Constantemente perseguido pelo inspetor de polícia Javert (Russell Crowe), que transformou a captura do ex-presidiário em uma verdadeira obsessão, Valjean adota Cosette como filha e, em um momento posterior, presta assistência a um pretendente (Eddie Redmayne) da garota durante uma batalha popular revolucionária.

Primeiro trabalho de Tom Hooper após ser premiado com um controverso Oscar de Melhor Direção, Os Miseráveis ajuda a alimentar a polêmica graças à reincidência do excesso de maneirismos do pouco experiente diretor. Além do uso abusivo e frequentemente inoportuno de lentes grande-angulares, que deformam os atores e os cenários, Hooper inexplicavelmente volta a criar composições que relegam os atores às quinas ou extremidades do quadro e os obrigam a ceder espaço de tela para muros, paredes, objetos ou outras partes aleatórias dos cenários - o que só não é pior, claro, que os recorrentes planos inclinados, que, usados na maioria das vezes sem qualquer propósito narrativo, parecem adotados apenas para ressaltar que há um trabalho de direção sendo feito.

Por outro lado, Hooper consegue fazer alguns bons trabalhos de câmera, como os passeios aéreos que ajudam a conferir fluidez aos saltos temporais mais longos ou exploram os majestosos cenários criados pela equipe de design de produção. E ainda que peque ao transformar a apresentação dos Thénardier (Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen) em um espetáculo repetitivo de furtos pouco críveis ou ao insistir em afastar-se dos personagens quando estes atingem os ápices de suas canções, o diretor acerta ao manter a câmera no rosto dos atores em boa parte do tempo - e é impossível tocar nesse ponto sem mencionar o soberbo e longo close que, mantendo o foco na expressão sofrida de Anne Hathaway (Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge) através de uma profundidade pequena de campo, traz um desabafo absolutamente devastador da derrotada e desiludida Fantine.

Anne Hathaway em OS MISERÁVEIS (Les Miserábles)

Aliás, o impressionante trabalho vocal (com desafinadas e engasgos de choro evidentemente favoráveis ao propósito da cena) e o domínio sobre as emoções adequadas a cada verso de "I Dreamed a Dream" transformam a atriz no destaque absoluto do longa. Não que o desempenho do restante do elenco seja insatisfatório: todos os atores conseguem incorporar a natureza cantante dos personagens com bastante veracidade - até mesmo Russell Crowe (O Homem Com Punhos de Ferro), que, além de cantar mal, interpreta o sujeito que estaria menos disposto a soltar o gogó em circunstâncias convencionais. E enquanto Amanda Seyfried (O Preço do Amanhã) não aparece em cena por tempo suficiente para se destacar ou comprometer o longa e o talentoso Hugh Jackman abraça com vigor o personagem icônico, conferindo intensidade às várias fases de Jean Valjean, Eddie Redmayne consegue segurar bem as pontas no papel de Marius (embora balance exageradamente a cabeça ao prolongar certas notas), ao passo que Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, como alívios cômicos tolos, são prejudicados por uma caracterização que remete demasiadamente a Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, longa musical do qual ambos participaram (e no qual Bonham Carter também interpretava a descabelada e mesquinha proprietária de uma espelunca). Fechando o elenco, estão nomes oriundos do espetáculo teatral, como Samantha Barks (que volta a interpretar Éponine) e Colm Wilkinson (que viveu o Jean Valjean da formação original londrina e, no filme, dá vida ao Bispo).

Infelizmente, a natureza musical da produção não favorece homogeneamente a narrativa: as canções não raramente soam demasiadamente expositivas (embora isto seja uma característica natural do gênero) e, muitas vezes, redundantes - e se, em um longa convencional, um conjunto específico de expressões faciais e corporais conseguiria exprimir o conflito moral de Valjean ao ser informado que um inocente estava sendo julgado por seus crimes, aqui o dilema é esmiuçado e reiterado em uma canção de três ou quatro minutos. Dessa forma, o filme acaba se tornando mais longo que o necessário - e a experiência torna-se particularmente torturante quando coincidências pipocam em excesso na tela e doses significativas de atenção são voltadas para o triângulo amoroso formado por Cosette, Marius e Éponine. Por outro lado, os poucos momentos falados do filme geralmente vêm associados a uma apropriada (mesmo que, por vezes, discreta) carga dramática - o que cria um interessante contraponto com a ocasião em que Valjean propõe que a filha adotiva se afaste da cidade e, ao notar a resistência da garota, começa a cantar, como se a eloquência tornasse sua argumentação mais convincente. Por fim, vale mencionar ainda que a produção utiliza e reutiliza com inteligência as melodias de "Look Down" e "I Dreamed a Dream" para desenvolver o tema central da história.

Irrepreensível em termos de maquiagem, figurinos, efeitos visuais e direção de arte, Os Miseráveis é um filme longo que, com uma abertura e um encerramento mais marcantes que aquilo que se encontra entre eles, ao menos consegue manter a essência e a força de uma obra que ainda consegue despertar o fascínio e interesse do público mais de cento e cinquenta anos após sua publicação - ainda que a musicalidade possa dividir opiniões.

Samantha Barks e Eddie Redmayne em OS MISERÁVEIS (Les Misérables)