8 de janeiro de 2013

Cena em Destaque | Married Life


Em mais de uma ocasião, lamentei publicamente meu deficiente conhecimento sobre conceitos musicais por uma razão única e exclusiva: a incapacidade de desconstruir e analisar detalhadamente o magnífico trabalho de Michael Giacchino (que lhe rendeu um Oscar) na composição Married Life, que acompanha uma das sequências mais excepcionais já produzidas pelos estúdios Pixar. No auge da minha ignorância sobre o tema, discutirei um ou outro momento da trilha que considero mais emblemático - e peço desde já perdão por quaisquer asneiras que possam ser ditas por aqui.

O filme é Up - Altas Aventuras e, pouco depois de se conhecerem na infância, Carl e Ellie são jovens adultos se unindo em matrimônio e construindo um lar, cujas características fundamentais - como a pintura, a caixa de correio ou as poltronas - irão perdurar por vários anos (e pelo restante do filme). A partir daí, sons diegéticos não são mais ouvidos, cabendo à trilha, à montagem, aos movimentos de câmera e às ações dos personagens construir o sentido do que está acontecendo - algo que Giacchino e os artistas da Pixar realizam com primor. A trilha começa otimista e reflete o frescor da juventude e o universo de possibilidades que a vida a dois reserva (observe como Carl se contenta com o simples ato de ouvir a voz da esposa durante um piquenique). A ideia de ter um filho (ou muitos, para a breve hesitação de Carl) é levantada - e aí a coisa começa a mudar de figura.

O plano de ter um bebê enche ambos de ansiedade, e essa expectativa é insinuada pela trilha quando, deitados na toalha do piquenique, Carl e Ellie parecem aprovar a ideia. Na cena seguinte, porém, o casal surge montando o quarto da criança, mas a trilha não está em sintonia: parece perder a energia, antecipando que há algo de errado - e um travelling para a direita nos leva a um local escuro e asséptico onde, de longe (dando uma certa privacidade ao casal), observamos Ellie sendo consolada por Carl e um médico. O pôster na parede do consultório e o estado de espírito da mulher deixam claro: ela não pode ter filhos.


É então que, depois de conceder à esposa tempo e espaço para superar a dor, Carl convida Ellie a viver uma vida de aventuras. O crescente musical é retomado gradativamente (repare como a trilha melancólica de piano volta a ganhar o acompanhamento de outro instrumento mais alegre apenas depois que Carl pousa o livro de aventuras nas pernas de Ellie) e uma nova etapa da vida do casal é iniciada. A viagem dos sonhos para o Paraíso das Cachoeiras depende de economias que, por força das circunstâncias, nunca são acumuladas. Os incidentes variados que obrigam o casal a gastar suas reservas - como um pneu furado ou danos no telhado da casa - representam uma espécie de fuga da rotina, algo que, de certa forma, se perde quando vemos Ellie ajudando Carl a amarrar uma infinidade de gravatas, em planos-detalhes que revelam o avanço do tempo através de breves aparições de cabelos grisalhos ou alterações físicas da caixa torácica do homem.

Depois de várias décadas bem vividas, resiste o companheirismo do casal e vem à tona a experiência da idade, expressa no plano em que, num movimento praticamente involuntário, Carl evita que seu carrinho de balões flutue e lhe escape, como já ocorrera antes na juventude. Da mesma forma que a rotina de aposentados do casal - marcada essencialmente por faxinas -, a trilha deixa de ser estimulante e se torna levemente acomodada, vindo a dar uma sacudida e exprimir uma espécie de apreensão apenas quando Carl, num surto de nostalgia, decide reativar os antigos planos aventureiros. O fundo musical, então, ganha um novo gás e é tomado por uma melancólica expectativa, quando o homem prepara uma surpresa para a esposa encaixando as passagens da viagem à América do Sul na cesta de piquenique.


O céu claro, os gramados cheios de vida e a árvore repleta de folhas verdes que compunham a paisagem dos passeios da juventude no parque agora dão lugar a folhas amarelas prestes a cair dos galhos e ao crepúsculo alaranjado de um dia às vésperas de acabar. A antes cômica dificuldade do jovem Carl de alcançar o topo do morro, agora, é transferida para a velha Ellie de forma sintomática. O detalhe do chapéu ao vento quando Carl corre em direção à esposa ressalta o óbvio foco da preocupação do homem. Um novo travelling para a direita confirma o esperado: algo não está certo com Ellie.


Com um solo calmo e triste de piano, a mulher aceita seu destino e aproveita os últimos instantes na companhia do marido. Para o funeral, a igreja que antes sediou o alegre casamento dos personagens passa a abrigar apenas a solidão do viúvo, uma coroa de flores e alguns balões. Sem Ellie, a vida de Carl passa a fazer menos sentido - e a transição em fade entre a igreja e a casa do homem representa o salto direto do personagem do luto à reclusão, sob uma alvorada que promete um recomeço que, naquele momento, Carl se recusa a admitir.

Como se não bastasse lançar o espectador em uma montanha-russa emocional ao resumir uma vida em pouco mais de quatro minutos, essa sequência tem sua beleza complementada quando, próximo ao desfecho, um melancólico e desiludido Carl abre o livro de aventuras do casal e é lembrado, pela memória da esposa, que não há maior aventura nesse mundo do que viver uma vida ao lado de quem se ama.