19 de julho de 2012

Crítica | Valente

VALENTE (Brave)

★★★

Brave, EUA, 2012 | Duração: 1h33m27s | Lançado no Brasil em 20 de julho de 2012, nos cinemas | História de Brenda Chapman. Roteiro de Mark Andrews & Steve Purcell e Brenda Chapman & Irene Mecchi | Dirigido por Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell | Com as vozes de Kelly Macdonald, Billy Connolly, Emma Thompson, Julie Walters, Robbie Coltrane, Kevin McKidd, Craig Ferguson e John Ratzenberger.

Pôster/capa/cartaz nacional de VALENTE (Brave)
Lendas são, de modo geral, narrativas econômicas e fantasiosas cujos pormenores acabam se perdendo à medida que são passadas de pessoa para pessoa ou simplesmente inexistem desde o princípio, de modo a não desviar o foco da moral ou dos ensinamentos contidos em sua essência. O episódio vivido por Merida (Kelly Macdonald) em Valente, por exemplo, tem um enorme potencial de se tornar lendário para gerações futuras daquela comunidade, graças às lições sobre valentia, confiança e fraternidade contidos nele - e tendo em vista as diversas fragilidades de seu desenrolar, é provável que, para aquele povo, a lenda ganhe força como tal a partir do momento em que suas minúcias começarem a ser esquecidas.

O processo de criação, obviamente, percorre o caminho inverso: os roteiristas Mark Andrews, Steve Purcell e Irene Mecchi se juntaram a Brenda Chapman para preencher as lacunas e transformar em um longa coeso a lenda de uma princesa destemida e aventureira que decide desafiar os costumes de seu reino e assumir as rédeas da própria vida, causando transtornos quase catastróficos para sua família e seu povo. Mais especificamente, nos tempos antigos da Escócia, três clãs são convocados pelo rei Fergus (Billy Connolly) a apresentar seus respectivos primogênitos como pretendentes para sua filha, a habilidosa arqueira Merida. Pressionada pela rainha Elinor (Emma Thompson) a seguir as tradições e a se portar com a etiqueta esperada de uma princesa, a jovem acaba recorrendo a uma bruxa excêntrica e senil (Julie Walters) que elabora um feitiço com base em conclusões equivocadas sobre os anseios de Merida. Desse modo, o resultado inesperado da magia obriga mãe e filha a trabalharem juntas e correrem contra o tempo para reverter o feitiço e evitar um iminente embate entre os clãs.

Décimo terceiro longa-metragem animado da Pixar, Valente é também o primeiro da empresa protagonizado por uma mulher, que não empalidece diante de antecessores como Woody, Buzz, Carl ou Remy: remetendo à Rapunzel de Enrolados, Merida é uma garota audaciosa e independente que, sufocada pelo conservadorismo que a cerca, luta constantemente pelo direito de decidir os rumos da própria vida - ambição esta refletida em seus longos cabelos encaracolados que, além de conferir-lhe uma aparência jovial e despojada, são formados por cachos de formas e tamanhos distintos que crescem e se movimentam com irrefreável liberdade. A animação de cabelos, aliás, é o grande destaque técnico da produção: apesar de descrito pelos animadores como semirrealista, o desempenho das madeixas ruivas de Merida alcança resultados que impressionam pela proximidade com a realidade, desde o volume, a elasticidade e o modo como contornam o rosto da personagem até a forma natural como interagem com o arco quando este se encontra repousado em seu ombro.

Não que os outros aspectos técnicos sejam menos impressionantes: encravados nos terrenos montanhosos galeses, o castelo e a floresta, visualmente elaborados e de geografia simples, facilitam a compreensão do espectador (quando necessário) sobre a dinâmica das cenas, ao passo que os figurinos ajudam a caracterizar e distinguir os vários personagens, como os lordes de cada clã e seus herdeiros. Além disso, os animadores provam ter feito a lição de casa ao reproduzir a flexão sofrida por uma flecha quando o atiramento é visto em câmera lenta, algo que ressalta o cuidado da equipe com detalhes. Enquanto isso, a trilha composta pelo escocês Patrick Doyle (com a presença de gaitas de fole, como não poderia deixar de ser) revela-se mais eficiente que as canções inócuas compostas por Alex Mandel, que ao menos não ganham destaque suficiente para incomodar. Já a animação dos personagens mantém a fluidez e o padrão de excelência estabelecidos pela Pixar ao longo dos anos (repare a desenvoltura de Merida pegando um prato de comida sem ser notada pela cozinheira), frequentemente apostando em sutilezas - e nesse sentido, o destaque fica por conta do trabalho feito com um urso, que alterna com precisão entre a selvageria irracional e a complexidade da natureza humana presa a um corpo estranho.

VALENTE (Brave)

É uma pena, portanto, que a narrativa peque em criatividade e não consiga reprisar a originalidade e o primor de trabalhos anteriores da Pixar, limitando-se a resgatar e costurar uma série de elementos bastante característicos e exaustivamente explorados especialmente pela Disney. Adaptando a estrutura vista em produções como o ótimo Como Treinar o Seu Dragão (jovem desacreditado e deslocado deve convencer seu colérico pai que uma suposta monstruosidade é na verdade afável e, com isso, provar seu próprio valor), da concorrente PDI/Dreamworks, para uma história de princesa, Valente ainda usa a ideia de transformar um personagem em animal sem agregar nada que já não tenha sido visto e trabalhado em filmes como A Princesa e o Sapo, A Nova Onda do Imperador, Irmão Urso ou A Bela e a Fera - apenas para citar exemplos da própria Disney -, além de não conseguir justificá-la satisfatoriamente.

Aliás, o comportamento excêntrico e relapso da bruxa não exclui o fato de que toda a atrapalhada magia executada é extremamente conveniente e possui um timing exageradamente adequado, fora as diversas dúvidas que deixa no ar (não leia o restante do parágrafo caso não queira saber informações importantes sobre a trama): a "mudança" solicitada por Merida a princípio acaba ficando no limiar entre causadora e consequência do esfíngico contrafeitiço, isto é, mãe e filha são unidas pela dificuldade de resolver o enigma e essa união é responsável por trazer Elinor de volta à forma humana; então, toda aquela desventura foi ou não algo premeditado pela bruxa? Se sim, por que submeter mãe e filha a tamanhos riscos e como explicar a reação da feiticeira ao perceber que entendera errado o pedido inicial de Merida? E por que ela não interveio naquele exato momento? Ainda nesse sentido, os espectros azuis que conduzem a princesa aos lugares certos nas horas certas jamais estabelecem um padrão que disfarce seu uso baseado na conveniência e arbitrariedade.

E apesar de contar com várias inserções eficientes de humor, Valente também peca pelo excesso de personagens periféricos que, geralmente sem funções determinantes para o arco geral, assumem o papel de alívios cômicos, desde os jovens e travessos trigêmeos e a governanta Maudie até o corvo de estimação da bruxa ou os lordes e seus herdeiros - e não é à toa que um dos clãs recebe o nome de MacGuffin, termo criado por Hitchcock para designar elementos que ajudam a mover a trama sem desempenhar um papel fundamental nesta (há também um outro nomeado de Macintosh, numa clara homenagem a Steve Jobs). Por outro lado, os diretores Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell acertam na construção do simbolismo (óbvio, é verdade, mas bem representativo) de Merida libertando-se da clausura de seu apertado vestido no momento em que decide subverter os costumes locais e conseguem construir de forma discreta e legítima a aproximação entre a rainha e a princesa, distanciando-se com eficiência da passagem em que a falta de comunicação entre mãe e filha é representada por ambas - separadas fisicamente e aproximadas pela montagem - ensaiando um diálogo de desabafo com base em suposições (corretas) sobre as reações de suas almejadas interlocutoras.

Valente é, portanto, mais capítulo bem sucedido da história da lendária Pixar que, apesar dos tropeços recentes (Carros 2 manda lembranças), ainda consegue nos presentear com aquilo que sabe conceber melhor: o encanto de seus personagens.

Obs.: há uma cena extra após os créditos finais.

VALENTE (Brave)