15 de abril de 2012

Curta | Morte Cega


Pouco antes do início da sessão inaugural de Morte Cega, realizada hoje no Cine Humberto Mauro, aqui em Belo Horizonte, o diretor e roteirista Pablo Villaça, o produtor Guilherme Fiúza e os atores Maurício Canguçu, Carlos Magno Ribeiro e Geraldo Magela, em meio a gentis e honestas trocas de elogios, teceram agradecimentos aos envolvidos no projeto e fizeram questão de enfatizar as dificuldades de realizar uma produção como aquela - o que não era nenhuma novidade para mim, que acompanhei com curiosidade todas as informações divulgadas sobre o curta ao longo dos últimos meses. Não fosse isso (e meus singelos e humildes conhecimentos sobre produção cinematográfica), dez minutos depois eu estaria duvidando ferozmente dos discursos daqueles homens: os ótimos trabalhos de todos os envolvidos na produção unem-se de forma tão natural e orgânica que extrair da projeção as tais dificuldades enfrentadas é uma tarefa ardilosa, tamanha a eficiência técnica da obra e a facilidade de envolver-se com a narrativa.

Segunda experiência do crítico de cinema como diretor e roteirista (o trabalho anterior foi o curta A_ética), Morte Cega faz jus à promessa de Villaça e se estabelece como uma válida declaração de amor ao Cinema. Metalinguístico ao extremo, o filme conta a história de um cineasta fracassado que, durante um sonho, tem uma ideia para um curta altamente dependente da participação de Geraldo Magela como protagonista. E isso é tudo que você precisa saber sobre o filme; descobrir o restante ao longo da projeção faz toda a diferença.

Para começo de conversa, o filme se destaca pela ótima sintonia entre a direção de arte de Renata Martins e a fotografia de Alexandre Baxter, que, juntas, confrontam a informalidade da cena ambientada em um bar com a atmosfera mais rígida daquela passada em um sofisticado restaurante, além de conceberem o quarto de Francis como um local constantemente mergulhado em sombras, com paredes repletas de cartazes de filmes de suspense (que resumem as idolatrias do sujeito) dividindo espaço com um determinado certificado que, enquadrado como se fosse uma verdadeira honraria, revela bastante sobre a situação do protagonista em sua própria profissão. Além disso, os figurinos de Rizza desempenham bem suas funções (vide a cor e a fineza dos trajes de Magela na cena do restaurante), bem como a montagem de Marco Aurélio Ribeiro e a trilha de Felipe Fantoni e Marcio Brant, que se destacam especialmente nas últimas cenas.

Povoado por personagens batizados com nomes bastante sugestivos (Francis, Martinho e Geraldo Magela), Morte Cega também conta com bons trabalhos de seu pequeno elenco, desde a breve participação de Carlos Magno Ribeiro até toda a evolução de Maurício Canguçu como Francis, desempenhada de forma absolutamente satisfatória. O destaque, porém, fica por conta da participação de Geraldo Magela: estreando no Cinema, o consagrado comediante topa conceder seu nome e imagem a uma inusitada e divertida desconstrução de sua própria pessoa ao mesmo tempo que tem sua carreira homenageada e, talentoso como é, alcança um resultado que certamente agradará a muitos - diferentemente, por exemplo, da vexatória participação de Al Pacino em Cada um Tem a Gêmea Que Merece.

Para completar, Pablo Villaça (que novamente ressalta a importância das contribuições de cada membro da equipe ao encabeçar os créditos finais com "Um filme de...") mostra-se bastante seguro na direção, aplicando bem os conceitos adquiridos ao longo de anos de estudo e paixão pelo Cinema sem jamais perder o foco com exercícios de estilo. Porém, essa competência pouco adiantaria caso a ideia central não fosse boa, bem desenvolvida e satisfatoriamente amarrada - e felizmente, Morte Cega é tudo isso (gosto bastante, particularmente, do plano final). Assim, sou levado a crer que aspectos autobiográficos oriundos da metalinguagem sejam realmente minoria aqui; afinal, diferentemente de Francis, Pablo é um cineasta em plena ascensão - e mesmo que a mudança de profissão não pareça estar em pauta, Morte Cega prova que perder um dos maiores críticos do país para a produção cinematográfica talvez não seria um prejuízo tão grande assim.


Morte Cega, Brasil, 2012 | Escrito por Pablo Villaça | Dirigido por Pablo Villaça | Com Maurício Canguçu, Carlos Magno Ribeiro e Geraldo Magela.

13 de abril de 2012

Redescobrindo Titanic em 3D

TITANIC em 3D

Eu tinha apenas 7 anos quando assisti a Titanic pela primeira vez. Obviamente não recordo detalhes da sessão (é minha segunda recordação mais antiga de ida ao cinema, perdendo apenas para James e o Pêssego Gigante, dois anos antes), mas lembro que foi no imenso e extinto Cine Palladium (onde hoje funciona um teatro com mais de 1300 assentos) aqui em Belo Horizonte, na companhia de minha mãe, minha tia, meu irmão e meu primo (estes dois, com 8 e 10 anos, provavelmente). Éramos uns dos primeiros da fila, e havia uma ansiedade generalizada no ar, de modo que me recordo de algum estresse envolvendo o remanejamento da fila para permitir a saída da sessão anterior. Em seguida, tenho imagens imprecisas em minha memória da entrada na sala e da escolha dos lugares. Depois disso, eu sendo pego de surpresa pela excitação da fatia masculina da plateia no instante em que Kate Winslet fica nua, com direito a "fiu-fiu" e uma infusão de flashes de câmeras fotográficas, é a recordação mais forte que tenho de toda a sessão. Curiosamente, as reações contidas dos jornalistas e blogueiros durante a cabine de imprensa da versão em 3D realizada na última semana aqui em BH despertaram recordações daquela primeira sessão, perdidas ao longo destes 14 anos: lembrei-me da torcida do público em alguns instantes do clímax do filme, como no momento em que Rose (Kate Winslet) cospe na cara de Cal (Billy Zane) ou quando o vilão escorrega durante uma perseguição ao casal principal.

Meses depois daquela ocasião, eu e meu irmão compramos (ou ganhamos) a versão em VHS do filme e revimos incontáveis vezes. Tenho plena convicção de que Titanic é o filme que vi mais vezes na vida, ainda que nem sempre na íntegra (por diversas vezes, pulávamos direto para a cena do embarque dos passageiros). Em certa fase da adolescência, graças ao interesse por novos filmes e a uma truncada transição do VHS para o DVD, fiquei alguns anos sem assistir ao filme, voltando a fazê-lo em 2009 (aos 18 anos, portanto). Jamais o tendo visto com a maturidade necessária, sabia que descobriria uma porção de coisas novas, mesmo tendo uma memória fotográfica admirável e pleno entendimento de boa parte das situações e dos diálogos - e de fato, foi possível absorver vários elementos nunca antes percebidos. O que eu não esperava, entretanto, é que três anos depois, revê-lo nos cinemas (com a desculpa do relançamento em 3D) representaria uma nova redescoberta do filme, lançando por terra vários entendimentos infantis enraizados em minha memória.

Isso só foi possível porque, a certa altura, depois de tantas repetições, eu já havia decorado boa parte do filme e, assim, quando certa sequência tinha início, não era nenhuma surpresa para mim onde ela iria chegar. Pensar no que estava acontecendo, portanto, não era mais necessário, e raramente eu descobria algo novo (por muito tempo acreditei ingenuamente, por exemplo, que Fabrizio estava sendo sincero quando dizia, no início da viagem, que já conseguia ver a Estátua da Liberdade bem pequena). Dessa forma, quando Jack (Leonardo DiCaprio) e Rose começam um determinado diálogo no convés do navio, eu sabia que a sequência prosseguiria com uma "aula de cuspe" e culminaria na chegada de Ruth (Frances Fisher) e Molly (Kathy Bates), partindo então para o jantar de gala e, depois, para a animada festa na 3ª classe - mas detalhes intermediários nunca ganhavam minha atenção. Ainda nesse sentido, apenas nesta última vez entendi plenamente, por exemplo, o desfecho da cena em que os personagens de DiCaprio e Winslet interagem pela primeira vez, quando o homem salva a vida da mulher: o flagrante dos dois deitados no chão, abraçados, ofegantes, com as roupas reviradas e após um grito de socorro de Rose é bastante sugestivo para uma mente adulta, mas minha mentalidade de criança se dava por satisfeita com a associação da posição desajeitada de Rose caída no chão com o fato de Cal ser o vilão - e com isso, por muito tempo, não dediquei maior atenção à passagem.

Aliás, já que citei essa cena, vale comentar que, também pela primeira vez, percebi como James Cameron usa a temática do primeiro encontro entre Jack e Rose como linha definidora do romance do casal, que em diversos momentos da trama proferem falas que remetem aos diálogos daquela cena - e mais interessante ainda é perceber como o diretor repete a ação de Jack em posição privilegiada na popa do navio içando Rose e salvando-a da morte em dois momentos distintos, criando uma interessante e irônica rima. Por outro lado, o horror das tragédias pessoais e coletiva permanece intacto desde meu primeiro contato com o filme - e seria uma enorme perda de tempo citar todas as ótimas sacadas de James Cameron para construir esse sentimento.

Leonardo DiCaprio e Kate Winslet em TITANIC em 3D

No entanto, o objetivo principal do relançamento de Titanic nos cinemas não é exatamente comemorativo; a conversão para 3D é o grande foco da campanha de divulgação, uma vez que a fascinação que a tecnologia ainda exerce sobre muitas pessoas e o preço mais elevado do ingresso são o que garantirá o enchimento dos bolsos dos produtores. A boa notícia é que, longe de criar uma sensação de imersão equivalente à de um filme originalmente concebido com a tecnologia, o 3D acerta várias vezes, é indiferente na maior parte do tempo e erra feio apenas em poucas ocasiões. Para começo de conversa, duas cenas emocionalmente opostas (e passadas nos dois extremos do navio) envolvendo Rose ganham uma nova dimensão (trocadilhos à parte): mesmo sem um acréscimo efetivamente relevante, a inquietação de observar o mar enquanto ela ameça se jogar e a sensação de voo proporcionada por Jack na icônica cena na proa do navio se tornam mais palpáveis do que nunca para o espectador. O mesmo vale para os momentos finais do naufrágio do navio, que parecem receber um tratamento especial e funcionam muitíssimo bem em três dimensões, assim como cenas nas quais a câmera faceia o nível d'água (o instante em que Cal desiste de perseguir Jack e Rose é um bom exemplo).

Além disso, de modo geral, elementos visuais como barras, grades, botes, cordas e partículas em suspensão, colocados em planos diferentes, ajudam a conferir a desejada sensação de profundidade, ao passo que cenas que contam com personagens correndo (como Jack e Frabrizio, antes do embarque) destacam-se por alcançar apenas um meio termo, com os atores mudando de plano constantemente mas permanecendo com uma aparência chapada. A técnica usada para destacar os atores dos cenários ao fundo, aliás, é o que mais prejudica Titanic 3D: os cabelos brancos e desgrenhados de Gloria Stuart são um obstáculo que a equipe não consegue contornar com sucesso, surgindo sempre com um contorno bastante artificial. Para completar, a cena em que a câmera se aproxima de Leonardo DiCaprio parado em frente ao relógio no alto de uma escada escada é uma das mais artificiais de todo o longa, perdendo completamente a noção espacial e parecendo ter sido trabalhada por técnicos de CGI incompetentes.

Por fim, é interessante comentar que, diferentemente de George Lucas, James Cameron demonstra um certo respeito por sua obra original ao, por exemplo, manter intocados erros amplamente divulgados ao longo da última década e meia, como um reflexo da câmera que surge no vidro da porta do restaurante. No mais, a velha ladainha da falta de necessidade da conversão de filmes memoráveis para 3D volta a se aplicar aqui - mas considerando o já mencionado saldo positivo deste caso específico, deixo registrada minha recomendação, acreditando nas enormes possibilidades de uma revisita a Titanic na tela grande.

Pôster/capa/cartaz nacional de TITANIC em 3D
Titanic 3D, EUA, 2012 | Duração: 3h14m43s | Lançado no Brasil em 13 de Abril de 2012, nos cinemas | Escrito por James Cameron | Dirigido por James Cameron | Com Kate Winslet, Leonardo DiCaprio, Billy Zane, Kathy Bates, Frances Fisher, Gloria Stuart, Bill Paxton, Victor Garber, Bernard Hill, Jonathan Hyde, David Warner, Suzy Amis, Danny Nucci, Jason Barry, Ioan Gruffudd, Rochelle Rose.

Crítica | Titanic 2

por Eduardo Monteiro

Titanic II, EUA, 2010 | Duração: 1h29m50s | Lançado no Brasil em 2011, na TV | Escrito por Shane Van Dyke | Dirigido por Shane Van Dyke | Com Shane Van Dyke, Marie Westbrook, Bruce Davison, Brooke Burns, Michelle Glavan e D.C. Douglas.

Shane Van Dyke é um picareta. Neto do veterano Dick Van Dyke, o ator, diretor e roteirista tornou-se, nos últimos anos, colaborador da produtora norte-americana The Asylum (uma espécie de musa inspiradora da brasileira Vídeo Brinquedo), que frequentemente apropria-se de temas e da repercussão de sucessos hollywoodianos para lançar sua próprias versões baratas e de qualidade duvidosa daquelas produções, na maior parte das vezes voltadas para home video. Dessa forma, nos mesmos anos em que eram lançados nos cinemas de todo o mundo The Day The Earth Stood Still (O Dia em Que a Terra Parou), Transformers: Revenge of the Fallen (Transformers - A Vingança dos Derrotados) e Paranormal Activity (Atividade Paranormal), Van Dyke dirigiu, escreveu e/ou estrelou coisas como The Day The Earth Stopped, Transmorphers: Fall of Man e Paranormal Entity - e no caso desse último, a produtora sequer se deu ao trabalho de disfarçar a similaridade (eufemismo?) com o longa de Oren Peli, que fica mais que evidente na arte de divulgação criada para o produto.

Eis que chegamos em 2010 e a Titanic 2 que, com Shane Van Dyke responsável por direção, roteiro e protagonismo, obviamente não se trata de uma continuação do mega sucesso de James Cameron mas certamente aproveita-se da memória afetiva do público e da curiosidade gerada pelas diversas especulações que surgiram ao longo dos anos sobre possíveis sequências para o filme de 1997 para arrancar alguns trocados da audiência. Contando a história da viagem inaugural do navio Titanic II, lançado às pressas para celebrar o centésimo aniversário do predecessor, o filme acompanha o pedante, milionário e narcisista dono do navio, Hayden (Van Dyke), e sua relação mal resolvida com uma integrante da tripulação, Amy (Westbrook). Porém, o pai da mulher, o capitão James Maine (Davison), descobre que uma instabilidade na calota polar estaria causando o descolamento de grandes pedras de gelo e gerando, consequentemente, enormes tsunamis que prometem comprometer todas as embarcações do Atlântico - mas claro que, em questão de minutos, o Titanic II torna-se a única preocupação da guarda costeira.

Como se não bastasse toda a picaretagem, Van Dyke ainda faz questão de transformar o longa em uma sessão particular de massagem para o próprio ego, tendo seu personagem apresentado com a imponência de uma câmera lenta e na companhia de nada menos que quatro mulheres (de uma hora para outra, passam a ser apenas três - não me pergunte por quê), sem perceber, é claro, que isso não o configura como um conquistador galante, mas como um arrogante, babaca e cafajeste - o que é rapidamente corrigido, é claro, quando o roteiro reserva para ele o posto de salvador da pátria, levando-o a um sacrifício final e sua consequente redenção que tornam-se ainda piores graças à péssima simulação de hipotermia do ator. Além disso, o diretor e roteirista não parece minimamente incomodado em exaltar o próprio machismo em seu texto, seja apresentando as mulheres como meros pedaços de carne (a primeira parte do corpo de Michelle Glavan a aparecer no filme é o quadril - visto por trás), ou seja exibindo uma delas tecendo comentários com óbvia conotação sexual a respeito da grandeza do navio, segundos após a apresentação do protagonista.

Já do ponto de vista técnico, o longa é miseravelmente mal sucedido por assumir desafios maiores que o próprio orçamento e graças, também, à incompetência do diretor - algo que fica evidente, por exemplo, na baixa qualidade dos efeitos especiais, que desrespeitam as leis mais básicas da física e não convencem os espectadores em uma cena sequer. E se as tomadas internas jamais criam a ambientação convincente de um navio de verdade, a situação torna-se crítica quando a água praticamente não é vista durante o naufrágio e, quando finalmente aparece (após quase dois terços de filme), nunca passa de um filete que mal molha os pés dos personagens (com exceção apenas da última cena). Além disso, a péssima direção de figurantes sabota qualquer tentativa do longa de conferir algum realismo ao pânico vivenciado pelos passageiros, já que todos parecem correr em círculos quase literais - isso sem falar da ridícula predisposição de tropeçarem no final de uma escada específica do navio, plano este que é repetido incontáveis vezes pelo diretor.

Porém, como se o conjunto da obra já não fosse suficientemente ridículo, Van Dyke ainda tenta recriar (com resultados homogeneamente desastrosos) cenas ou diálogos de Titanic, desde a especulação da tripulação a respeito do tempo de naufrágio do navio ("Duas horas, talvez três") até a cena do embarque, na qual meia dúzia de figurantes despedem-se de outra meia dúzia com acenos incrivelmente artificiais e impessoais. O cúmulo, porém, é alcançado quando o diretor tenta reproduzir o horror da memorável cena em câmera lenta dos personagens de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet em disparada pelos corredores do navio com uma monstruosa parede d'água os perseguindo, que, aqui, traz Van Dyke e Westbrook correndo desesperadamente de... um inofensivo spray d'água e de duas ou três goteiras. Além disso, a maior parte dos obstáculos são de uma estupidez alarmante e subestimam a todo momento a inteligência do espectador, como na cena em que o casal principal faz uma travessia pendurado em uma barra e, quando uma das mãos de Amy escorrega, Hayden simplesmente pega o braço da mulher e o conduz de volta - um esforço que ela obviamente conseguiria realizar sozinha.

Com um desfecho patético cuja cereja do bolo consiste no capitão Maine finalmente alcançando o navio segundos antes de naufragar por completo e respondendo a pergunta "Como você pretende chegar lá [na sala em que Amy se encontra]?" com um "Não importa", Titanic 2 é um esforço exatamente equivalente àquele desempenhado por Amy na última cena para reanimar Hayden: longuíssimo, inútil e terrivelmente anticlimático.

8 de abril de 2012

Crítica | A Vida em um Dia

A VIDA EM UM DIA (Life in a Day)

★★★★★

Life in a Day, EUA/Reino Unido, 2011 | Duração: 1h34m27s | Lançado no Brasil em 27 de janeiro de 2011, no YouTube | Dirigido por Kevin MacDonald e por usuários do YouTube.

Pôster/capa/cartaz nacional de A VIDA EM UM DIA (Life in a Day)
O que você fez ao longo do dia 24 de julho de 2010? Eu, particularmente, não consigo lembrar. Segundo consta em minhas anotações de filmes vistos nos últimos anos, assisti a Homem-Aranha 2, Borat! e 300, uma combinação extremamente inusitada que indica que permaneci boa parte daquele sábado de férias trancado dentro de casa. Pode ser que eu tenha tido companhia vendo os filmes ou que tenha saído à noite, mas não posso precisar. Em suma, aquele foi um dia absolutamente normal em minha vida - e não fosse A Vida em um Dia chamar minha atenção, dificilmente pararia para pensar como aquela e todas as voltas completas seguintes da Terra em torno do próprio eixo podem e devem ter sido, cada uma a seu modo, ocasiões especiais para pessoas em outros cantos do planeta. Nesse sentido, o documentário surge para abrir os olhos daqueles que levam existências inertes e monótonas e vem provar que, para transformar uma data qualquer em um dia especial, não é preciso muito: basta querer que ela o seja.

Resultado da peneiragem de mais de 4500 horas de imagens registradas em 24 de julho de 2010 por pessoas de mais de 190 nacionalidades diferentes, A Vida em um Dia (não confundir com o péssimo A Vida Num Só Dia, com Amy Adams e Frances McDormand) é um documentário concebido como uma cápsula do tempo para mostrar às gerações futuras como era estar vivo em meados de 2010 - mas vai além, retratando de forma espetacular a diversidade cultural e comportamental do ser humano e estabelecendo a internet como um ambiente definitivo para o intercâmbio cultural. Imaginar que tudo o que é mostrado no filme acontece quase simultaneamente é algo fascinante e, mesmo que nem todos tenham cumprido o combinado proposto pelo diretor Kevin MacDonald (O Último Rei da Escócia, Desafio Vertical) e pelos produtores Ridley e Tony Scott de enviar registros feitos exclusivamente na data predeterminada, o simples fato de que tudo aquilo pode ter acontecido em um mesmo dia é o bastante para despertar o mesmo fascínio.

Diante da imensidão de material disponível e considerando que o filme é uma co-produção entre EUA e Reino Unido, é compreensível que os produtores tenham dado prioridade aos registros de pessoas falando em inglês e com maior qualidade de som e imagem - e, querendo ou não, o projeto acabou consistindo em uma oportunidade única para cineastas desconhecidos de todo o mundo tentarem fazer seus trabalhos alcançarem o grande público, já que muitos dos cinegrafistas sequer podem ser classificados como amadores, executando técnicas sofisticadas como stablishing shot, plano-detalhe, time lapse, rack focus, super slow motion, e por aí vai. As exceções ficam por conta, claro, daqueles registros reveladores sobre tradições e culturas curiosas (como o pai japonês viúvo que se esforça para criar o filho pequeno e tem como hábito saudar a imagem da falecida esposa, usando uma lente grande angular que, propositalmente ou não, ressalta a desordem do pequeno apartamento em que vivem em Tóquio) ou situações arrebatadoras que simplesmente não poderiam ficar de fora em função da qualidade técnica ou do idioma - como a filmagem imprecisa de um parto que, possivelmente feita pelo pai-coruja, é interrompida quando este ganha o chão em um desmaio, sendo rapidamente socorrido pelos médicos em um bom e claro português.

A VIDA EM UM DIA (Life in a Day)

Porém, por mais que busque durante a maior parte do tempo alimentar um sentimento de humanidade e tocar o espectador com registros sensíveis, divertidos ou alegres (poderia citar o senhor de idade hospitalizado demonstrando sua gratidão por toda a ajuda que recebe; o jovem que confessa por telefone para a avó que é gay; o casal de idosos que renova com bom humor os votos de casamento; o encontro esporádico de um rapaz com seu rabugento pai, que lhe cobra estudos e sucesso profissional mas, a seu modo, demonstra carinho pelo filho; e por aí vai), o filme também não ignora adversidades presentes em nosso dia-a-dia, como violência, morte, intolerância e preconceito, incluindo cenas capazes até mesmo de gerar reações inesperadas no espectador, como quando somos levados a sentir pena (e não necessariamente repulsa) da ignorância de um homem humilde que "teme o homossexualismo" já que, segundo ele, isto é uma doença, e doenças devem ser evitadas e combatidas. Enquanto isso, a breve aparição de um homem com uma camisa de um time de futebol brasileiro agredindo covardemente outro homem impede que os brasileiros tenham muito orgulho da participação do país no filme. Por outro lado, é difícil compreender o que passou pela cabeça de MacDonald e do montador Joe Walker ao inserir imagens de cheerleaders ou de uma limusine abarrotada de mulheres provocantes em uma montagem intensa voltada fundamentalmente para emoções negativas, como se tentasse fazer uma crítica vazia, superficial e desonesta à objetificação da mulher que simplesmente não se encaixa naquele momento.

Engrandecido por uma trilha sonora espetacular de Harry Gregson-Williams e Matthew Herbert, A Vida em um Dia apresenta um ritmo impecável ao tomar como centrais algumas poucas e pequenas histórias (como a do ciclista coreano, por exemplo) e ao compatibilizar sua cronologia com a evolução natural de um dia (com um ritmo mais lento durante as primeiras horas do dia ou após o almoço, por exemplo), ambos impedindo que o espectador encare aquilo tudo como uma compilagem aleatória de vídeos. Além disso, MacDonald e Walker ainda inserem, durante o desenvolvimento, algumas pequenas e interessantes antologias, como os trechos dedicados a nascimentos ou às respostas para as perguntas propostas pelos produtores (O que você ama? Do que tem medo? O que tem nos bolsos?). Além disso, o trabalho de Walker na montagem merece aplausos pela inteligência alcançada em determinados instantes, como aquele em que peraltices de soldados norte-americanos em atividade são seguidas por registros de um homem afegão empenhado em desmitificar a imagem negativa de seu país, imagens estas que por sua vez são alternadas com as etapas da preparação de uma mulher para uma video-conferência com o marido - e mesmo que o filme não confirme isso, não seria uma extrapolação muito grande supor que o homem seja um soldado em atividade e que o distanciamento do casal tenha sido imposto pela guerra.

Para completar, após vivenciarmos incontáveis tipos de emoções diferentes, somos presenteados com um desfecho absolutamente tocante: uma mulher, obrigada a trabalhar em pleno sábado, registra seu próprio desabafo ao constatar que, próximo à meia-noite, nada de especial ou inusitado aconteceu em sua vida naquele dia - mas suas próprias palavras acabam conduzindo à reflexão e à conclusão que levantei no primeiro parágrafo. Isto é: basta querer para transformar um dia em uma ocasião especial - e 24 de julho de 2011 definitivamente foi uma dessas.

A VIDA EM UM DIA (Life in a Day)

6 de abril de 2012

1 ano de Cinema Sem Erros

Até algumas poucas horas atrás, o conteúdo desta postagem era completamente diferente do que acabou sendo publicado (exceto o último parágrafo, que sobreviveu à reformulação por razões que não vêm ao caso). Na primeira versão, uma série de reflexões de cunho pessoal estudavam minha trajetória na blogosfera ao longo do último ano, mas resolvi poupá-los de tamanha ladainha e tocar apenas em alguns pontos que me parecem de maior importância.

Antes de mais nada, após um ano de promessas não cumpridas, aproveito a oportunidade para lançar uma nova, que - esta sim - será levada bastante a sério: não fazer mais promessas. Mesmo sem grandes reflexões, parece-me uma decisão bastante lógica e prudente. Entretanto, isso não impede que os planos para este segundo ano do blog sejam iniciados já nos próximos dias: livre de preciosismos, lapidarei gradativamente o conteúdo já existente nos arquivos do Cinema Sem Erros, de modo a eliminar quinas e imperfeições surgidas ao longo destes meses, por imaturidade e inexperiência.

Por fim, deixo registrados os meus agradecimentos absolutamente enfáticos a todos aqueles que apóiam ou prestigiam este espaço de forma sincera, mesmo não expressando isso publicamente. Mais do que o prazer eventual de conseguir colocar em palavras minhas reações a determinadas produções cinematográficas, a satisfação de conhecer pessoas (virtual ou pessoalmente) que compartilhem, em diferentes níveis, um interesse em comum ("paixão pela sétima arte" é uma das expressões mais cafonas do universo, por isso não irei usá-la) é o que realmente faz este trabalho amador, informal e não remunerado valer a pena. E em uma fase de imensa desilusão profissional como a que me encontro, essas pessoas são fundamentais para que eu mantenha e renove as pretensões ingênuas mencionadas na inauguração deste projeto.

E agora que você já leu tudo isso, sejamos sinceros: esse negócio de comemorar aniversário de blog é uma tremenda palhaçada! Voltemos à programação normal.