1 de março de 2012

Crítica | Drive

Ryan Gosling em DRIVE

★★★★

Drive, EUA, 2011 | Duração: 1h40m48s | Lançado no Brasil em 2 de março de 2012, nos cinemas | Baseado no livro de James Sallis. Roteiro de Hossein Amini | Dirigido por Nicolas Winding Refn | Com Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Albert Brooks, Ron Perlman, Oscar Isaac, Christina Hendricks e Kaden Leos.

Pôster/capa/cartaz nacional de DRIVE
Em determinado momento de Drive, o motorista vivido por Ryan Gosling menciona a tradicional parábola do escorpião e do sapo, na qual o aracnídeo, em uma situação de vida ou morte, recorre ao anfíbio apenas para, segundos depois, trair sua confiança de um modo que compromete a sobrevivência de ambos, justificando a traição (uma ferroada venenosa durante a travessia de um corpo d'água) como sendo parte de sua natureza - e a menção não poderia ser mais adequada, já que o longa nos apresenta a um grupo de personagens agindo de forma impulsiva e inconsequente diante de um contexto em que suas verdadeiras e brutais naturezas têm a chance de aflorar.

Roteirizado por Hossein Amini com base no livro de James Sallis, o filme traz o personagem de Ryan Gosling como um homem de poucas palavras que, além de trabalhar na oficina mecânica de Shannon (Bryan Cranston), realiza alguns trabalhos como dublê de motorista e, esporadicamente, coloca-se à disposição de bandidos para transportá-los de um local a outro sem envolvimento maior no crime que estiverem cometendo. Porém, após conhecer e se afeiçoar por sua vizinha Irene (Carey Mulligan) e, especialmente, por seu filho Benicio (Kaden Leos), o homem é impulsionado a colaborar com Standard Gabriel (Oscar Isaac), ex-presidiário casado com a mulher e pai do garoto, em um assalto que garantirá o pagamento de uma dívida iniciada na prisão e que coloca em risco a segurança da família. Mas quando a operação não sai como o planejado e Standard acaba morto, o protagonista passa a ser perseguido por homens perigosos e, com Irene e Benicio ameaçados de morte, ele se vê obrigado a atacar os vilões com igual violência e intensidade.

Dirigido pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn, Drive se destaca por uma abordagem pouco tradicional em filmes sobre assalto e máfia: afora o discurso no qual descreve seus métodos como motorista de fuga logo na primeira cena, o personagem de Gosling permanece calado e com o semblante fechado por boa parte dos minutos seguintes, transmitindo com perfeição sua solidão e o isolamento emocional que define sua trajetória. Investindo muito mais em um clima contemplativo do que expositivo, Refn constrói com delicadeza e economia a aproximação entre o motorista e os recém-descobertos vizinhos: repare, por exemplo, como a entrada do homem na vida daquela família é representada com discrição e eficiência pela simples ambientação das cenas, já que, contrapondo a única e obscura aparição de seu apartamento no primeiro plano do filme, o motorista é visto por diversas vezes no aconchegante lar da vizinha (e em determinado diálogo, os tons quentes da parede atrás de Mulligan e o azul por detrás de Gosling são bastante sugestivos), ao passo que um passeio do trio comandando pelo motorista em um reconfortante e inexplorado local perdido em meio à cidade de Los Angeles pode ser simbolicamente encarado como um convite do protagonista para a aproximação de Irene e Benicio.

Felizmente, a relação entre os personagens de Gosling e Mulligan nunca recai na pieguice dos romances convencionais, até mesmo porque a introspecção emocional do homem parece habilitá-lo muito mais a estabelecer uma relação ingênua e primitiva (daí a proximidade maior com Benicio) do que a se aventurar em uma relação mais adulta. Assim, o único beijo trocado pelo casal acaba funcionando mais como um pedido de compreensão do homem diante dos inesperados (para a mulher) e violentos eventos que virão a seguir do que como uma consumação da afinidade entre os dois, ao passo que detalhes como o uso pontual de câmera lenta, a preocupação instantânea de Irene em relação à periculosidade do trabalho do vizinho como dublê ou os poucos, tímidos e incontidos sorrisos que Ryan Gosling solta pontuam perfeitamente a identificação entre o motorista, a mulher e o garoto, momentos estes embalados por uma trilha que não tem vergonha de ressaltar a doçura daquela relação.

Jeff Wolfe, Carey Mulligan e Ryan Gosling em DRIVE

Aliás, a trilha sonora é um dos pontos altos de Drive, desde o repertório com canções que evocam os anos 80, marcadas por letras adequadas à trama (às vezes excessivamente), até os acordes tensos que acompanham a brilhante sequência de fuga que abre o filme, mérito alcançado não só pelo trabalho do compositor Cliff Martinez, mas pela sinergia alcançada em conjunto com a direção de Refn (que nos coloca dentro do carro, vivendo as mesmas emoções e ansiedades dos fugitivos), a montagem de Mat Newman (que alterna maravilhosamente bem as reações dos personagens e a ação externa), o ótimo trabalho de edição de efeitos sonoros (sons de tiro, sirenes, do motor do carro e do rádio da polícia desempenham um papel fundamental) e a atuação minimalista de Gosling, que confere ao motorista uma excepcional e mecânica competência atrás do volante. Ainda nesse aspecto, é interessante notar como o ator consegue manter o personagem centrado, porém ligeiramente mais agitado, quando este é jogado em uma perseguição inesperada e mais intensa em um momento posterior do filme.

Além disso, Gosling faz um trabalho impecável na transformação de seu personagem a partir do ponto em que toda a situação começa a fugir do controle, quando o próprio filme se torna mais inquietante e recebe doses cavalares de violência gráfica cujo choque é mais do que adequado aos rumos que a história toma. Nesse sentido, Bryan Cranston, Albert Brooks e Ron Perlman, cada um a seu modo e com suas peculiaridades, fazem um bom trabalho dando vida a homens covardes que, incapazes de formular modos alternativos e pacíficos de resolver os próprios problemas e subestimando a ameaça representada pelo protagonista, não hesitam em permitir que suas naturezas brutais aflorem e passam a tomar decisões automáticas e instintivas, acreditando cegamente que trair os próprios parceiros não acarretará em maiores prejuízos para si mesmos e para seus negócios pessoais.

O que nos traz de volta à parábola do escorpião e do sapo e à personalidade do protagonista, cujo paralelo se torna ainda mais interessante quando relacionamos a um diálogo transcorrido entre o motorista e Benicio em determinado momento: aparentemente sem indícios suficientes sobre o antagonista do programa de tevê ao qual assistem, o homem pergunta ao garoto quem é o vilão e como ele consegue ter tanta certeza disso, tendo como resposta "(...) o tubarão, porque tubarões são sempre os vilões. Olhe para ele; parece bonzinho?". Estas respostas, evidentemente, deixam o motorista intrigado, e não é para menos: afinal, um homem exclusivamente motivado a proteger pessoas amadas e inocentes, disposto a colocar a própria vida em risco por elas, mas que também é capaz de esmagar furiosamente o crânio de um oponente já inconsciente, é um herói ou um vilão?

A verdade é que, mesmo surgindo em diversas cenas usando uma jaqueta com um escorpião estampado nas costas, o motorista visto aqui jamais poderia ser diminuído a um estereótipo fabulesco nem a uma vilanização digna de programas infantis - e nesse sentido, o jogo de espelhos que confunde o espectador enquanto o protagonista veste uma máscara antes de realizar uma cena de capotagem como dublê é bastante emblemático sobre sua personalidade. Contrapondo à sua natureza violenta e psicopata, vemos também com extrema clareza sua natureza amorosa e protetora emergindo - e convenhamos que complexidade como essa, fábula infantil nenhuma consegue alcançar.

Ryan Gosling e Carey Mulligan em DRIVE