29 de março de 2012

Crítica | O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida

O LORAX: EM BUSCA DA TRÚFULA PERDIDA (The Lorax)

★★

Dr. Seuss' The Lorax, EUA, 2012 | Duração: 1h26m14s | Lançado no Brasil em 30 de março de 2012, nos cinemas | Baseado no livro de Dr. Seuss. Escrito por Ken Daurio e Cinco Paul | Dirigido por Chris Renaud e Kyle Balda | Com as vozes de Zac Efron, Danny DeVito, Ed Helms, Taylor Swift, Rob Riggle, Betty White, Jenny Slate.

Pôster/capa/cartaz nacional de O LORAX: EM BÚSCA DA TRUFULA PERDIDA (The Lorax)Lorax. Trúfula. Sneed. Barbalute. Dr. Seuss. Ainda que este último nome possa soar menos estranho que os anteriores (especialmente para quem estiver mais familiarizado com O Grinch, O Gato e Horton e o Mundo dos Quem!), é notável que os personagens, o universo e as histórias infantis criadas por Theodor "Dr. Seuss" Geisel nunca emplacaram efetivamente no Brasil, o que transforma a divulgação do novo longa de animação da recém-fundada Illumination Entertainment em uma tarefa ingrata para a distribuidora brasileira. Porém, nada pode ser feito a respeito da qualidade do filme, uma vez que os criadores do fraco Meu Malvado Favorito parecem ter assumido na produção um desafio maior que suas capacidades: seguindo o caminho contrário da maioria das adaptações (que geralmente precisam cortar uma série de passagens das obras originais ao invés de preencher lacunas deixadas pelos autores), o roteiro de O Lorax floreia de forma problemática as pouco mais de 70 páginas (com poucos textos e muitas ilustrações) da história de ninar criada por Dr. Seuss sem conseguir conferir liga, relevância e profundidade a um conto que - vale lembrar - tem como principal objetivo auxiliar os pais na tarefa de fazer seus filhos dormirem.

Escrito por Ken Daurio e Cinco Paul, o filme se divide em duas linhas narrativas para desvendar os mistérios por trás do estilo de vida dos habitantes de Sneedville, uma cidade altamente artificial e sintética cuja economia é movida fundamentalmente pela venda de ar puro, mercado este monopolizado pelo ganancioso e diminuto Sr. O'Hare (Rob Riggle). Nesse contexto, o jovem Ted (Zac Efron), empenhado em conquistar a bela Audrey (Taylor Swift), decide atravessar a imponente muralha fronteiriça da cidade em busca de uma árvore de trúfula (planta cuja copa é formada por uma pelagem insuperavelmente macia e colorida) para presentear a garota, mas se choca ao encontrar campos marcados pela desolação e ausência de vida. Temendo os malefícios que a fotossíntese das árvores poderia trazer para seus negócios, O'Hare faz de tudo para dificultar os planos de Ted, que, seguindo uma sugestão da vovó Norma (Betty White), encontra além do perímetro da cidade uma solitária e triste casa na qual vive um homem com uma história - e aí entramos na segunda linha narrativa, dedicada ao relato de como uma invenção e a ambição de um jovem chamado Umavez-ildo (Ed Helms) aniquilaram todas as formas de vida das redondezas de Sneedville.

E o tal Lorax (Danny DeVito), como se encaixa nessa história? Bem, a razão para o personagem-título não ter sido mencionado até então é clara e simples: ele pouco aparece ao longo da projeção e praticamente não influencia o comportamento dos personagens ou os rumos da narrativa. Apresentando-se como guardião da floresta, o ser alaranjado, baixinho e bigodudo só aparece com sua missão ambientalista minutos após Umavez-ildo cortar uma árvore de trúfula para usar a macia e sedosa pelagem da planta como matéria-prima do protótipo de Sneed, invenção que muda os rumos de sua vida e cuja versatilidade abusa da boa vontade do espectador. Porém, dotado de um poder de persuasão ineficaz e aparentemente livre de habilidades mágicas que auxiliem em sua tarefa, o Lorax é um personagem basicamente descartável cujo único esforço real para deter a destruição do ecossistema que deveria proteger consiste na absurda decisão de jogar Umavez-ildo e sua cama num rio, vindo a salvá-lo da morte de forma quase involuntária. Por essas e outras, é natural que os "esforços" do guardião sejam vencidos pela pressão e ganância da interesseira família do inventor e pela estupidez surreal do processo extrativista adotado para os negócios - e por mais que o roteiro pareça tentar convencer o público que o envolvimento posterior do jovem Ted na causa ambiental fazia parte de um plano maior (e talvez premeditado) do Lorax ou algo parecido, é inexplicável que nenhuma atitude a respeito da devastação tenha sido tomada ao longo de décadas e é difícil ignorar que a principal motivação do garoto para proteger a última esperança de sobrevida das trúfulas não tem nada de altruísta, enfraquecendo ainda mais a batida mensagem ecológica - que, por sinal, já havia sido trabalhada de forma bastante semelhante (porém com muito mais inteligência) em outro longa de animação, WALL•E.

O LORAX: EM BUSCA DA TRÚFULA PERDIDA (The Lorax)

E já que citei a existência de similaridades entre O Lorax e o filme da Pixar, não poderia deixar de mencionar que a apropriação descarada de elementos oriundos de outras animações é recorrente e deselegante - e assim, salta aos olhos ver uma idosa surpreendendo a todos e revelando uma desenvoltura descomunal no snowboard (bem como a Vovozinha em Deu a Louca na Chapeuzinho) assim como o Sr. O'Hare se estabelecendo como uma versão masculina e vilanesca da estilista Edna Moda de Os Incríveis. Ainda nesse sentido, é necessário um esforço desmedido para não lembrar das lesmas cantoras de Por Água Abaixo (ou até mesmo do trio de roedores de Alvin e os Esquilos) sempre que os peixes cantores surgem em cena, já que suas similaridades se estendem desde a forma como executam suas intervenções na narrativa até o modo como suas vozes são destoadas digitalmente.

Os animais que habitam o Vale da Trúfula, aliás, recebem uma atenção especial dos animadores e demais artistas - e não é pra menos, já que tantos os tais peixes cantores quanto os barbalutes (espécie de ursinhos) ou os cisnes cismados exibem traços milimetricamente pensados para encantar o público e desviar a atenção do vácuo criativo deixado pela falta de assunto do roteiro. Assim, além de contar com um ou dois indivíduos propositalmente mais engraçadinhos que os demais (há um filhotinho de barbalute e um pequeno cisne vesgo), a fauna do Vale da Trúfula protagoniza uma infinidade de cenas avulsas e irrelevantes que, bem como aquelas envolvendo os minions em Meu Malvado Favorito, apenas incham o filme e desperdiçam um tempo precioso que poderia ser empregado no desenvolvimento da trama. Já o design dos personagens, mesmo sem aderir ao biotipo característico das criações de Dr. Seuss (com exceção, talvez, de Umavez-ildo e dos peixes cantores), abusa de traços caricatos e desproporções (algo usual em animações), enquanto o design de produção faz um bom trabalho na concepção do universo excêntrico, dominado por uma variedade de cores, curvas e formas assimétricas que remetem à eficiente Quemlândia de Horton e o Mundo dos Quem! Por fim, o uso de 3D não se baseia em sutilezas e traz objetos saltando "para fora" da tela sempre que possível, chegando ao cúmulo de se valer da concentração do espectador num plano fechado de uma cena mais calma para fazê-lo saltar na poltrona quando um objeto inesperado literalmente brota de uma parede e desponta veloz na direção da "câmera".

Repleto de piadas deslocadas e batidas (pense em uma gag envolvendo uma cena de ação movimentada e um elevador abarrotado de pessoas sendo usado como rota de fuga. Pensou? Pois é - ela existe aqui) dividindo espaço com números musicais moderadamente satisfatórios, O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida é, em última instância, um filme de promessas não cumpridas: o personagem-título deveria ser importante e não é; o veículo da família de Umavez-ildo abrindo-se como uma nave alienígena deveria ter algum sentido, mas não tem; uma semente caindo dentro de um garrafão que rola morro abaixo misturado a vários outros idênticos deveria gerar certa dificuldade de resgatá-la, mas não é o que acontece; se "ar puro" engarrafado faz tanto sucesso, era de se esperar que os habitantes de Sneedville sofressem com a atmosfera da cidade, mas não é o que vemos. Mas principalmente: os produtores e roteiristas de Meu Malvado Favorito e Horton e o Mundo dos Quem! poderiam ter repetido o feito deste último, mas acabaram honrado a memória do primeiro - e quem sai perdendo, claro, é o público.

Obs.: O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida é o primeiro filme a trazer a nova vinheta da Universal Pictures em comemoração do centenário da empresa. A anterior era utilizada desde 1996.

O LORAX: EM BUSCA DA TRÚFULA PERDIDA (The Lorax)

15 de março de 2012

Crítica | Guerra é Guerra!

Tom Hardy e Chris Pine em GUERRA É GUERRA! (This Means War)

★★

This Means War, EUA, 2012 | Duração: 1h37m32s | Lançado no Brasil em 16 de março de 2012, nos cinemas | História de Timothy Dowling e Marcus Gautesen. Roteiro de Timothy Dowling e Simon Kinberg | Dirigido por McG | Com Reese Witherspoon, Chris Pine, Tom Hardy, Til Schweiger, Chelsea Handler, Angela Bassett, Rosemary Harris, John Paul Ruttan, Abigail Spencer, Warren Christie.

Pôster/capa/cartaz nacional de GUERRA É GUERRA! (This Means War)
Do ponto de vista comercial, Guerra é Guerra! é um primor: trazendo dois atores em bons momentos de suas carreiras disputando a atenção de uma atriz querida e carismática, que por sua vez atua em sua zona de conforto, a produção surge como uma comédia romântica em uma embalagem de filme de ação que busca agradar o público jovem, tanto masculino quanto feminino, de forma extremamente calculada, unindo fórmulas muitíssimo conhecidas e exaustivamente exploradas nos dois gêneros ao longo dos últimos anos. Porém, como o Cinema está longe de ser uma ciência exata, o longa deixa muito a desejar do ponto de vista artístico, aproximando-se de uma mistura perigosa do divertido Sr. & Sra. Smith com o pavoroso Noivas em Guerra.

Dirigido por McG e escrito por Marcus Gautesen e Timothy Dowling com base em uma ideia deste último e de Simon Kinberg (Sr. & Sra. Smith), Guerra é Guerra! traz Reese Witherspoon como Lauren, uma mulher solteira que, pressionada pela amiga Trish (Chelsea Handler), aceita marcar um encontro com um homem que descobre em um site de relacionamentos, o divorciado Tuck (Tom Hardy). O que ela não imagina é que ele e o solteiro FDR Foster (Chris Pine) - por quem Lauren acaba se interessando após um encontro casual - se conhecem, são melhores amigos de infância, trabalham como agentes secretos da CIA e usarão tudo que estiver ao alcance - incluindo recursos da própria agência - para decifrar e conquistar a mulher sem que, a princípio, isto interfira na amizade de longa data existente entre os dois.

Paralelamente (e aqui sou bondoso, já que o correto seria "pontualmente"), o perigoso e foragido criminoso internacional Heinrich (Til Schweiger), motivado pela morte do irmão durante uma mal sucedida operação comandada por Tuck e FDR, é visto planejando sua vingança, que, diante da importância conferida ao triângulo amoroso ao longo da projeção, pode facilmente ser antecipada pelo espectador. Com isso, o viés de ação acaba se resumindo à ambientação do filme em um universo de espionagem (inverossímil, é verdade, mas falemos sobre isso depois) e a duas ou três cenas de ação assustadoramente mal conduzidas por McG, com excesso de cortes e uma câmera extremamente instável que impossibilitam que o espectador compreenda o que está acontecendo - o que fatalmente decepcionará o público que inadvertidamente acabar sendo arrastado para o cinema em busca de perseguições, tiros e explosões.

Aliás, já que citei que a forma como certo aspecto é tratado pelo roteiro acaba levando o espectador a prever certeiramente eventos posteriores, vale mencionar que imprevisibilidade não é o forte de Guerra é Guerra!: a cada novo encontro entre Lauren e Tuck, imediatamente passamos a esperar que o mesmo ocorra entre a mulher e FDR (ou vice-versa) com duração e natureza parecidas - e nesse sentido, nunca somos desapontados. Dessa forma, o interesse de Lauren pelos rapazes raramente pende para um lado da balança, protelando estrategicamente a dúvida sobre os rumos do triângulo amoroso até quando for possível e desfazendo-a com a arbitrariedade esperada da construção feita até então e com a obviedade de uma equação matemática: A) Fulano desperta em Lauren um sentimento X; B) Trish diz para Lauren escolher aquele que lhe desperte o sentimento X; A + B = Fulano. E se o momento em que a protagonista é obrigada a escolher entre os dois homens pode ser apontado como uma das poucas boas sacadas dos roteiristas, ainda assim não é suficiente para que ignoremos que (e pule o final deste parágrafo caso não queira saber um spoiler apresentado pelo próprio filme com pouquíssimos minutos de projeção) a decisão é a mais óbvia dentre as soluções que garantiriam final feliz para os três, baseando-se essencialmente nos estados civis de Tuck e FDR.

Tom Hardy e Reese Witherspoon em GUERRA É GUERRA! (This Means War)

Para completar, uma das maiores falhas de McG e sua equipe consiste na ambientação da narrativa em um universo excessivamente inverossímil, o que surge de forma recorrente como uma distração desnecessária: repare, por exemplo, como o depósito no qual FDR apresenta a Lauren obras de seu artista favorito funciona muito bem como um cenário de filme, mas, em uma análise mais cuidadosa, a limpeza e a harmonia entre os caixotes, os panos e as luzes indiretas representam um esforço absurdo de decoração para uma ocasião que, em circunstâncias reais, não duraria mais que quinze minutos e cujo foco são as pinturas. Ainda nesse sentido, jamais saberemos quem era a mulher que nadava no início do filme na piscina que encobre o corredor da sofisticada casa de FDR, ao passo que é impossível não ficar perplexo com a escuridão da alfaiataria visitada por Heinrich a certa altura do longa - isso sem levar em conta a inexplicável decisão do vilão de atravessar meio mundo para descobrir a identidade dos assassinos de seu irmão a partir de um retalho de paletó (aparentemente, no universo do filme, ternos são únicos e exclusivos como as varinhas em Harry Potter, e o alfaiate é como o vendedor de varinhas Sr. Olivaras: lembra-se de todos os seus clientes).

Porém, mesmo com todos esses problemas, nada é tão incômodo quanto a infantilidade de Tuck e FDR na guerra de nervos apontada pelo título: se em Noivas em Guerra o clichê da histeria feminina com casamentos era uma razão minimamente plausível para justificar a (insuportável, é verdade) troca de ferpas entre melhores amigas de infância, acreditar que as versões masculinas das personagens de Kate Hudson e Anne Hathaway abram mão de uma amizade aparentemente bastante consolidada e passem a agir como adolescentes, colocando em risco até mesmo a vida um do outro em função de uma mulher, é um exercício tão ardiloso quanto tentar compreender a incapacidade da CIA em avaliar mentalmente seus agentes. E se os atores Chris Pine e Tom Hardy até conseguem preservar suas dignidades apesar dos esforços contrários do roteiro, a comediante Chelsea Handler satura a paciência do espectador já em sua primeira aparição como a amiga conselheira e desbocada de Lauren, enquanto a própria Reese Witherspoon contenta-se em ligar seu tradicional piloto automático que de tão bem consolidado, a certa altura, quase consegue fazer a indagação "Você acha possível amar igualmente duas pessoas ao mesmo tempo?" não parecer algo absurdamente patético.

Falhando até mesmo ao referenciar Os Bons Companheiros, através de um curto plano-sequência em uma boate que não chega nem perto de fazer jus ao rodado por Scorsese e sequer consegue ser executado sem cortes escondidos, Guerra é Guerra! é um produto que poderia ser comparado, em uma analogia bem rasteira, àqueles tradicionais salgadinhos industrializados que fazem a alegria da criançada: a embalagem é até atraente, o conteúdo acabará agradando a muitos, mas certamente será evitado por aqueles que prezam pela saúde - nem que seja a do próprio bolso.

Reese Witherspoon e Chris Pine em GUERRA É GUERRA! (This Means War)

9 de março de 2012

Crítica | John Carter: Entre Dois Mundos

Willem Dafoe e Taylor Kitsch em JOHN CARTER: ENTRE DOIS MUNDOS (John Carter)

★★★

John Carter, EUA, 2012 | Duração: 2h11m48s | Lançado no Brasil em 9 de março de 2012, nos cinemas | Baseado no livro "Uma Princesa de Marte", de Edgar Rice Burroughs. Roteiro de Andrew Stanton & Mark Andrews e Michael Chabon | Dirigido por Andrew Stanton | Com Taylor Kitsch, Lynn Collins, Willem Dafoe, Samantha Morton, Mark Strong, Dominic West, Ciarán Hinds, Thomas Haden Church, James Purefoy, Daryl Sabara, Bryan Cranston, Polly Walker.

Antes de iniciar a análise sobre o primeiro longa em live-action de Andrew Stanton (WALL•E, Procurando Nemo), é importante mencionar que o material que inspirou o roteiro escrito pelo próprio Stanton em parceria com Mark Andrews e Michael Chabon tem, de cara, um fortíssimo argumento em sua defesa: criadas há nada menos que 100 anos por Edgar Rice Burroughs, as aventuras de John Carter são dotadas de certo pioneirismo no universo da ficção científica, de modo que, mesmo sendo pouquíssimo conhecidas pelo público brasileiro (aparentemente, o livro Uma Princesa de Marte, usado como base para esta adaptação, foi lançado pela primeira vez por aqui há pouco menos de dois anos), muitas de suas características acabaram influenciando uma enorme variedade de produções lançadas durante o último século. Dessa forma, é compreensível que sua trama, em particular, esteja longe de se estabelecer como uma referência de originalidade, mas ignorando as circunstâncias de sua concepção e analisando-a inserida no contexto atual - bem como todo filme deve ser analisado -, é simplesmente impossível ignorar seus problemas e o prejuízo que estes trazem para o resultado final.

Uma espécie de Avatar com pinceladas de Star Wars (o que é natural, já que tanto James Cameron quanto George Lucas já assumiram publicamente a inspiração na obra de Burroughs), John Carter: Entre Dois Mundos se inicia com uma desnecessária contextualização que, mesmo bastante explicativa, falha pela introdução excessiva de nomes desconhecidos e por tentar martelar o conflito do universo do filme, que poderia ser compreendido gradativamente ao longo da narrativa (por que não esperar para explicar, por exemplo, que o planeta Barsoom se trata de Marte quando o próprio protagonista descobre isso?). Pouco depois, conhecemos o personagem-título, um veterano da Guerra Civil americana que, durante a caçada por uma caverna cravada de pedras de ouro, é misteriosamente transportado para o desértico planeta Barsoom. Surpreendido por um incremento em sua força e pela capacidade de desempenhar grandes saltos em solo marciano (resultados da diferente força gravitacional agindo sobre ele), John Carter (Taylor Kitsch) acaba se tornando uma figura decisiva na guerra entre humanoides que se sucede entre a cidade itinerante Zodanga, cujo jeddak Sab Than (Dominic West) age sob influência do hekkador dos thern Matai Shang (Mark Strong), e Helium, liderada pelo jeddak Tardos Mors (Ciarán Hinds), que acredita que o casamento do oponente Sab Than com sua filha, a guerreira e cientista Dejah Thoris (Lynn Collins), dará fim aos conflitos civis.

Apesar da esperada confusão que as nomenclaturas complicadas poderiam causar, John Carter não possui uma narrativa difícil de acompanhar, especialmente pela sensação recorrente de estar assistindo a uma versão alternativa de Avatar: assim como ocorria com Jake Sully no filme de James Cameron, John Carter é acolhido por um grupo de nativos extraterrestres guerreiros e esguios (os tharks) com um misto de interesse e rispidez, passa a ser tratado por um nome errado (lá, "Jakesully" e aqui, "Virgínia") que ressalta as dificuldades de comunicação entre os diferente seres, recebe um título que destaca sua relevância no embate em que se envolve (o Dotar Sojat daqui não soa muito diferente do Toruk Mato de lá), recorre a um monumento sagrado em busca de respostas para os conflitos daquele mundo, apaixona-se pela filha do líder de certa comunidade, estabelece uma ligação com o planeta que redefine seu futuro pessoal e, em especial, torna-se uma liderança fundamental dentro daquele contexto - e é curioso notar que, intencionalmente ou não, Carter surge coberto de sangue azul na cena em que finalmente conquista a confiança dos tharks, remetendo à versão Na'vi de Jake Sully do clímax de Avatar. Por outro lado, os misticismos barsoomianos não contam com a mesma facilidade de compreensão, o que condena parte da atenção voltada para o tal Nono Raio monopolizado por Zodanga, mas acaba sendo positivo, por exemplo, para a concepção dos misteriosos e poderosos therns, que se mantém incógnitos tanto para os personagens quanto para o público.

Taylor Kitsch e Lynn Collins em JOHN CARTER: ENTRE DOIS MUNDOS (John Carter)

Lançando mão da mesma técnica de performance capture utilizada no recente Planeta dos Macacos: A Origem ou em Avatar (olha ele aí de novo), com a qual tanto a movimentação corporal quanto as nuances das expressões faciais dos atores são mapeadas e empregadas nas criaturas digitais, a equipe de Stanton consegue transformar os tharks em seres bastante convincentes, dotados de características exóticas sempre funcionais (repare como, mais de uma vez, são dadas funções para cada um dos quatro braços de Tars Tarkas, interpretado por Willem Dafoe). Além disso, os cenários mesclam com competência paisagens reais e elementos digitais, ao passo que o design de produção impressiona pela grandiosidade e detalhamento das cidades ou pela interessante concepção dos figurinos, enquanto a trilha do sempre competente Michael Giacchino não se sobressai, mas também não decepciona. A única ressalva, entretanto, fica por conta do 3D, já que, mesmo possuindo uma enorme quantidade de cenas com predominância de elementos digitais (que permitem o efeito tridimensional), o filme não foi rodado com câmeras equipadas com a tecnologia, de modo que a mise-en-scène dos atores, especialmente em cenários físicos, conta com uma profundidade extremamente deficitária.

Porém, a técnica admirável e a direção segura de Andrew Stanton perdem parte da importância quando falham em extrair emoção da história. Os grandes saltos de John Carter parecem ser o suficiente para torná-lo um herói impetuoso e invencível - algo bem representado por Taylor Kitsch, que confere bastante energia ao personagem -, reduzindo consideravelmente o perigo de suas ações (em determinada cena, ele derrota sozinho um exército inteiro de selvagens, impulsionado quase que exclusivamente pela angústia de recordações melancólicas) e deixando para seu bobo drama do passado o trabalho ingrato de torná-lo uma figura menos unidimensional. Além disso, assim que o casamento forçado de Dejah Toris (vivida por uma Lynn Collins mais inexpressiva que o ideal) e Sab Than (Dominic West em mais um papel que não lhe exige talento) é anunciado, a narrativa se torna fundamentalmente previsível e rasteira, ligando os fatos com argumentos fracos ou cenas de ação que apenas direcionam os personagens para a resolução do conflito central - e mais adiante, para a reviravolta boba e o desfecho da subtrama envolvendo o sobrinho de Carter na Terra, Edgar Rice Burroughs (Daryl Sabara - e não sei dizer por que o personagem recebe o nome do autor). Para completar, os roteiristas preferem não esclarecer para o público a razão que permite que o protagonista passe a entender o idioma alienígena, além de nunca deixarem claro como a exploração mineralógica feita por Zodanga compromete o planeta por completo e por que o embate em prol da salvação de Barsoom se limita apenas àquele microcosmo (teria J.K. Rowling se inspirado em John Carter ao restringir a batalha épica que afligiu o mundo bruxo à Inglaterra em Harry Potter?).

Repleto de diálogos tolos que apenas enfatizam os diversos clichês que o longa é obrigado a abraçar ("Eu já cheguei tarde uma vez e não quero que aconteça de novo"), John Carter: Entre Dois Mundos é um filme que funciona bem como um entretenimento vazio, mas que talvez teria funcionado bem mais caso tivesse sido lançado antes de tudo aquilo que a obra de Burroughs veio a influenciar. Tendo em vista o centenário da primeira publicação, parece que, infelizmente, o longa chegou mesmo um pouco atrasado.

Taylor Kitsch, Willem Dafoe e Lynn Collins em JOHN CARTER: ENTRE DOIS MUNDOS (John Carter)

4 de março de 2012

Crítica | A Saga Molusco: Anoitecer

Eric Callero e Heather Ann Davis em A SAGA MOLUSCO: ANOITECER (Breaking Wind)


Breaking Wind, EUA, 2011 | Duração: 1h21m46s | Lançado no Brasil em 2 de março de 2012, nos cinemas | Roteiro de Craig Moss | Dirigido por Craig Moss | Com Heather Ann Davis, Eric Callero, Frank Pacheco, Michael Adam Hamilton, Flip Schultz, Peter Gilroy, Alice Rietveld, John Stevenson, Rebecca Ann Johnson, Taylor M. Graham, Kelsey Collins e Danny Trejo.

Pôster/capa/cartaz nacional de A SAGA MOLUSCO: ANOITECER (Breaking Wind) Poucos produtos possuem uma legião de fãs tão cegos, fiéis e histéricos quanto a autointitulada saga iniciada em 2008 com Crepúsculo. Dessa forma, chega a ser curioso que, tentando desviar o foco da baixa qualidade do produto, a distribuidora nacional tenha apelado para o patriotismo dos brasileiros para angariar mais espectadores ao incluir, em sua pesada campanha de marketing para Amanhecer - Parte 1, uma caixa de texto que destacava a existência de cenas exclusivas rodadas no Brasil. Em resposta a isso, a distribuidora da paródia A Saga Chamusco: Escurecer decidiu incluir em sua campanha de divulgação a irônica constatação da inexistência de tais cenas em seu produto - e há algo de muito errado quando a melhor piada de um filme estadunidense supostamente concebido como uma comédia se encontra na versão brasileira de seu pôster.

Escrito e dirigido por alguém chamado Craig Moss, A Saga Minúsculo: Abastecer atraca (ou seria "naufraga"?) nos cinemas brasileiros com um enorme desafio: satirizar Crepúsculo em épocas em que a própria cinessérie já alcança níveis respeitáveis de autoparódia. Na tentativa, Moss usa o esboço de arco dramático criado pelos quatro episódios já lançados e consegue a proeza de criar uma narrativa (não sei se é a palavra adequada, mas vá lá) infinitamente mais ilógica do que aquela vista nos filmes parodiados, cujo único propósito consiste em encaixar comentários sexuais e escatológicos que, em algum lugar do mundo, devem levar alguém às gargalhadas.

Tão arbitrário e aleatório quanto o título nacional, A Saga Lusco-Fusco: Apodrecer atira para todos os lados (desde que envolvam ou terminem, repito, em sexo ou escatologia), jamais conseguindo relacionar de forma lógica ou orgânica seus projetos de piada com a própria trama. Dessa forma, em certo momento, o longa simplesmente para pra ouvir um relato do personagem de Danny Trejo que, completamente alheio à história, é usado apenas para jogar a esmo referências a produções de destaque como Avatar ou - pasmem - sugerir que, de Willy Wonka a Jack Sparrow, Johnny Depp interpreta sempre os mesmos personagens (algo derrubado pelas próprias imitações dos personagens vistas no próprio filme) - e como se os intermináveis 81 minutos já não fossem suficientemente ofensivos em todos os níveis possíveis, ser obrigado a ver um personagem querido como Edward Mãos-de-Tesoura defecando na cara de alguém beira a canalhice. Aliás, chega a ser constrangedor que um filme que não traz uma atuação interessante sequer (no semelhante e - céus, nunca imaginei que falaria isso! - superior Os Vampiros Que Se Mordam, ao menos a estreante Jenn Proske reproduzindo os trejeitos de Kristen Stewart era digno de reconhecimento) ouse criticar atores como Depp ou Brendan Fraser durante seu desenrolar apenas para, nos créditos finais, dedicar de 10 a 15 segundos a trechos do desempenho de cada integrante de seu péssimo elenco.

(Diante de algo tão absurdamente desestruturado quanto A Saga Corpúsculo: Agradecer, peço a compreensão de todos pela interrupção deste texto para um breve desabafo: honestamente, qual a graça de Bella (Heather Ann Davis) e Jacob (Frank Pacheco) transando aos berros na presença de um Edward (Eric Callero) que inexplicavelmente parece incapaz de notá-los? Em que instante eu deveria começar a rir e por quê? Obrigado).

Frank Pacheco em A SAGA MOLUSCO: ANOITECER (Breaking Wind)

E se em algum momento minhas menções às intrusões de sexo e escatologia parecerem repetitivas, talvez A Saga Prepúcio: Adormecer possa lhe ajudar a rever seus conceitos sobre o termo, já que a obsessão de Moss com tais opções de humor é tão absurda que, a partir de certo instante, os personagens passam a dar vazão à flatulência sem que haja um mínimo sentido por trás disso (no filme, esta frase seria usado como piada para sexo anal), mas simplesmente por ter passado 15 segundos sem que ninguém o tenha feito - e devo mencionar também que até mesmo o conflito central da trama é resolvido com um peido barulhento e ardido. Ainda nesse sentido, a ideia de ironizar o mal trabalhado conceito de imprinting em Crepúsculo é até uma boa sacada, mas Moss a joga no lixo quando o transforma em um mero orgasmo fulminante que, novamente, surge sempre interrompendo cenas que fatalmente não levariam a lugar nenhum.

Sabotado por direção, roteiro e interpretações, A Saga Músculo: Decrescer (que, vale notar, chega diretamente em home video nos Estados Unidos e tem sua estreia agendada em apenas dois ou três países de todo o mundo) ainda consegue ser prejudicado pelos aspectos técnicos, da fotografia insossa de alguém que não pretendo citar à trilha sonora dominada por canções de um intérprete único que desde já possui o meu desprezo - e até o trabalho trivial da edição de som consegue ser deficiente, algo explicitado na cena em que Carlisle (John Stevenson) deve digitar os famosos e odiados códigos anti-spam para acessar certo site e os sons que denunciam seus repetidos erros surgem, mais de uma vez, antes mesmo que o personagem termine de digitar. Além disso, Craig Moss (anotem esse nome) parece convencido que nanismo e homossexualidade são por si só piadas prontas, o que simplesmente dispensa comentários.

Mas como não há nada ruim o bastante que não possa piorar, A Saga Rebusco: Enaltecer consegue se superar quando, em seu desfecho, dedica o filme aos fãs de Crepúsculo e, em especial, a Emma Clark, cujos videos registrando suas primeiras e intensas reações aos trailers dos últimos longas da "saga" rapidamente se tornaram hit na internet (e nessa "homenagem", alguns trechos são inclusive exibidos). Porém, o que Moss parece incapaz de perceber é que a tortura a que fomos submetidos na hora anterior é tão severa que consegue fazer Crepúsculo parecer algo até bastante razoável e, dessa forma, somos naturalmente compelidos a compadecer por Clark e reprovar a ridicularização a que fora submetida - e quando um filme consegue despertar nossa empatia pela mais histérica das crepusculetes, é porque há algo de muito, mas muito errado mesmo.

Obs.: há uma cena adicional depois dos créditos finais, cujo despropósito é assustador e consegue superar até mesmo "o homem inflando a própria barriga" em Cada um Tem a Gêmea Que Merece.

Danny Trejo em A SAGA MOLUSCO: ANOITECER (Breaking Wind)

1 de março de 2012

Crítica | Drive

Ryan Gosling em DRIVE

★★★★

Drive, EUA, 2011 | Duração: 1h40m48s | Lançado no Brasil em 2 de março de 2012, nos cinemas | Baseado no livro de James Sallis. Roteiro de Hossein Amini | Dirigido por Nicolas Winding Refn | Com Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Albert Brooks, Ron Perlman, Oscar Isaac, Christina Hendricks e Kaden Leos.

Pôster/capa/cartaz nacional de DRIVE
Em determinado momento de Drive, o motorista vivido por Ryan Gosling menciona a tradicional parábola do escorpião e do sapo, na qual o aracnídeo, em uma situação de vida ou morte, recorre ao anfíbio apenas para, segundos depois, trair sua confiança de um modo que compromete a sobrevivência de ambos, justificando a traição (uma ferroada venenosa durante a travessia de um corpo d'água) como sendo parte de sua natureza - e a menção não poderia ser mais adequada, já que o longa nos apresenta a um grupo de personagens agindo de forma impulsiva e inconsequente diante de um contexto em que suas verdadeiras e brutais naturezas têm a chance de aflorar.

Roteirizado por Hossein Amini com base no livro de James Sallis, o filme traz o personagem de Ryan Gosling como um homem de poucas palavras que, além de trabalhar na oficina mecânica de Shannon (Bryan Cranston), realiza alguns trabalhos como dublê de motorista e, esporadicamente, coloca-se à disposição de bandidos para transportá-los de um local a outro sem envolvimento maior no crime que estiverem cometendo. Porém, após conhecer e se afeiçoar por sua vizinha Irene (Carey Mulligan) e, especialmente, por seu filho Benicio (Kaden Leos), o homem é impulsionado a colaborar com Standard Gabriel (Oscar Isaac), ex-presidiário casado com a mulher e pai do garoto, em um assalto que garantirá o pagamento de uma dívida iniciada na prisão e que coloca em risco a segurança da família. Mas quando a operação não sai como o planejado e Standard acaba morto, o protagonista passa a ser perseguido por homens perigosos e, com Irene e Benicio ameaçados de morte, ele se vê obrigado a atacar os vilões com igual violência e intensidade.

Dirigido pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn, Drive se destaca por uma abordagem pouco tradicional em filmes sobre assalto e máfia: afora o discurso no qual descreve seus métodos como motorista de fuga logo na primeira cena, o personagem de Gosling permanece calado e com o semblante fechado por boa parte dos minutos seguintes, transmitindo com perfeição sua solidão e o isolamento emocional que define sua trajetória. Investindo muito mais em um clima contemplativo do que expositivo, Refn constrói com delicadeza e economia a aproximação entre o motorista e os recém-descobertos vizinhos: repare, por exemplo, como a entrada do homem na vida daquela família é representada com discrição e eficiência pela simples ambientação das cenas, já que, contrapondo a única e obscura aparição de seu apartamento no primeiro plano do filme, o motorista é visto por diversas vezes no aconchegante lar da vizinha (e em determinado diálogo, os tons quentes da parede atrás de Mulligan e o azul por detrás de Gosling são bastante sugestivos), ao passo que um passeio do trio comandando pelo motorista em um reconfortante e inexplorado local perdido em meio à cidade de Los Angeles pode ser simbolicamente encarado como um convite do protagonista para a aproximação de Irene e Benicio.

Felizmente, a relação entre os personagens de Gosling e Mulligan nunca recai na pieguice dos romances convencionais, até mesmo porque a introspecção emocional do homem parece habilitá-lo muito mais a estabelecer uma relação ingênua e primitiva (daí a proximidade maior com Benicio) do que a se aventurar em uma relação mais adulta. Assim, o único beijo trocado pelo casal acaba funcionando mais como um pedido de compreensão do homem diante dos inesperados (para a mulher) e violentos eventos que virão a seguir do que como uma consumação da afinidade entre os dois, ao passo que detalhes como o uso pontual de câmera lenta, a preocupação instantânea de Irene em relação à periculosidade do trabalho do vizinho como dublê ou os poucos, tímidos e incontidos sorrisos que Ryan Gosling solta pontuam perfeitamente a identificação entre o motorista, a mulher e o garoto, momentos estes embalados por uma trilha que não tem vergonha de ressaltar a doçura daquela relação.

Jeff Wolfe, Carey Mulligan e Ryan Gosling em DRIVE

Aliás, a trilha sonora é um dos pontos altos de Drive, desde o repertório com canções que evocam os anos 80, marcadas por letras adequadas à trama (às vezes excessivamente), até os acordes tensos que acompanham a brilhante sequência de fuga que abre o filme, mérito alcançado não só pelo trabalho do compositor Cliff Martinez, mas pela sinergia alcançada em conjunto com a direção de Refn (que nos coloca dentro do carro, vivendo as mesmas emoções e ansiedades dos fugitivos), a montagem de Mat Newman (que alterna maravilhosamente bem as reações dos personagens e a ação externa), o ótimo trabalho de edição de efeitos sonoros (sons de tiro, sirenes, do motor do carro e do rádio da polícia desempenham um papel fundamental) e a atuação minimalista de Gosling, que confere ao motorista uma excepcional e mecânica competência atrás do volante. Ainda nesse aspecto, é interessante notar como o ator consegue manter o personagem centrado, porém ligeiramente mais agitado, quando este é jogado em uma perseguição inesperada e mais intensa em um momento posterior do filme.

Além disso, Gosling faz um trabalho impecável na transformação de seu personagem a partir do ponto em que toda a situação começa a fugir do controle, quando o próprio filme se torna mais inquietante e recebe doses cavalares de violência gráfica cujo choque é mais do que adequado aos rumos que a história toma. Nesse sentido, Bryan Cranston, Albert Brooks e Ron Perlman, cada um a seu modo e com suas peculiaridades, fazem um bom trabalho dando vida a homens covardes que, incapazes de formular modos alternativos e pacíficos de resolver os próprios problemas e subestimando a ameaça representada pelo protagonista, não hesitam em permitir que suas naturezas brutais aflorem e passam a tomar decisões automáticas e instintivas, acreditando cegamente que trair os próprios parceiros não acarretará em maiores prejuízos para si mesmos e para seus negócios pessoais.

O que nos traz de volta à parábola do escorpião e do sapo e à personalidade do protagonista, cujo paralelo se torna ainda mais interessante quando relacionamos a um diálogo transcorrido entre o motorista e Benicio em determinado momento: aparentemente sem indícios suficientes sobre o antagonista do programa de tevê ao qual assistem, o homem pergunta ao garoto quem é o vilão e como ele consegue ter tanta certeza disso, tendo como resposta "(...) o tubarão, porque tubarões são sempre os vilões. Olhe para ele; parece bonzinho?". Estas respostas, evidentemente, deixam o motorista intrigado, e não é para menos: afinal, um homem exclusivamente motivado a proteger pessoas amadas e inocentes, disposto a colocar a própria vida em risco por elas, mas que também é capaz de esmagar furiosamente o crânio de um oponente já inconsciente, é um herói ou um vilão?

A verdade é que, mesmo surgindo em diversas cenas usando uma jaqueta com um escorpião estampado nas costas, o motorista visto aqui jamais poderia ser diminuído a um estereótipo fabulesco nem a uma vilanização digna de programas infantis - e nesse sentido, o jogo de espelhos que confunde o espectador enquanto o protagonista veste uma máscara antes de realizar uma cena de capotagem como dublê é bastante emblemático sobre sua personalidade. Contrapondo à sua natureza violenta e psicopata, vemos também com extrema clareza sua natureza amorosa e protetora emergindo - e convenhamos que complexidade como essa, fábula infantil nenhuma consegue alcançar.

Ryan Gosling e Carey Mulligan em DRIVE