26 de janeiro de 2012

Crítica | Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres

MILLENNIUM: OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (The Girl with the Dragon Tattoo)

★★★★

The Girl with the Dragon Tattoo, EUA/Suécia/Reino Unido/Alemanha, 2011 | Duração: 2h37m53s | Lançado no Brasil em 27 de janeiro de 2012, nos cinemas | Baseado no livro de Stieg Larsson. Roteiro de Steven Zaillian | Dirigido por David Fincher | Com Daniel Craig, Rooney Mara, Stellan Skarsgård, Christopher Plummer, Robin Wright, Steven Berkoff, Yorick van Wageningen, Joely Richardson, Geraldine James, Donald Sumpter, Josefin Asplund, Ulf Friberg, Per Myrberg, Tony Way, Alan Dale e Moa Garpendal.

Pôster/capa/cartaz nacional de MILLENNIUM: OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (The Girl with the Dragon Tattoo)
Diferentemente do que ocorre entre os brasileiros, os espectadores estadunidenses têm uma ótima desculpa para justificar a preguiça de ler legendas no cinema: em um país que anualmente lança grande parte das maiores e mais relevantes produções cinematográficas da atualidade, é natural que o hábito disseminado de assistir a longas falados em inglês tenha como contraponto a dificuldade de encarar filmes com intervenções textuais constantes, mesmo que seja injustificável ignorar estes últimos por conta disso - algo que boa fatia do público de lá deve fazer. Dessa forma, mesmo que nem sempre ocorra em função do idioma, dezenas de filmes "estrangeiros" de destaque em seus países de origem ganharam ao longo dos anos suas próprias versões norte-americanas - e muitas delas acabaram marcadas pelos resultados inferiores, seja pela diluição de suas essências, pela falta de pretensão artística determinada pelo descaso do ritmo industrial de produção ou até mesmo pela própria falta de propósito dos projetos.

Contudo, há exceções. A eficiente versão norte-americana de Violência Gratuita, por exemplo, não deixa nada a desejar em relação à austríaca, uma vez que ambas foram comandadas pelo mesmo Michael Haneke e estão separadas apenas por 10 anos, atores, locações e idiomas diferentes, ao passo que a versão estadunidense de Morte no Funeral parece o único exemplo de remake feito exclusivamente para ofender a memória do filme original, uma produção britânica lançada apenas três anos antes (e falada, obviamente, também em inglês). E há aqueles raros casos em que as refilmagens encontram um viés que lhes permite superar os originais - e se não fosse mais uma readaptação do primeiro livro da trilogia Millennium escrita por Stieg Larsson do que um remake do longa sueco dirigido por Niels Arden Oplev, Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres certamente entraria com louvor nesse seleto grupo.

Adaptado por Steven Zaillian e dirigido por David Fincher, o filme introduz a investigação de um desaparecimento e suposto assassinato apenas para preparar o terreno para que testemunhemos o encontro inusitado de dois personagens: de um lado, enquanto sofre um processo que resulta em seu afastamento da revista Millennium, o jornalista Mikael Blomkvist (Daniel Craig) é contratado por Henrik (Christopher Plummer), patriarca da família Vanger, para investigar o tal crime cometido há décadas contra a jovem Harriet (Moa Garpendal) durante um evento na ilha particular da família e, em função de circunstâncias da ocasião, todos os Vanger são suspeitos; de outro, a punk, investigadora e hacker Lisbeth Salander (Rooney Mara), após ter investigado o próprio Blomkvist a trabalho, entra em conflito com Nils Bjurman (Yorick van Wageningen), tutor que passa a administrar de forma abusiva as finanças da garota em virtude de alegados problemas psicológicos. Porém, após juntar pistas que indicam a atividade de um serial killer responsável pelo assassinato brutal de mulheres, Mikael acaba indo de encontro a Lisbeth, que passa a colaborar de forma decisiva e ativa para a resolução do mistério.

Marcado por diálogos, o roteiro traz uma série de pequenas mudanças na história (me refiro ao longa sueco, já que não li o livro) que ajudam a tornar as exposições de informações menos maçantes e que conferem maior coesão e polidez à investigação e à trajetória dos personagens. Repare, por exemplo, como uma série de intervenções e informações irrelevantes são inseridas na primeira conversa entre Mikael e Henrik, algo que confere uma maior naturalidade a um diálogo entre indivíduos que acabaram de se conhecer e que não sabem quais informações sobre a ocasião a ser investigada são de fato relevantes para a resolução. Além disso, a inclusão de um gato de estimação ou da filha de Mikael vêm a calhar por tornar certas descobertas menos forçadas e, da mesma forma, a razão que leva Blomkvist a embarcar na investigação soa muito mais natural, clara e coesa aqui do que no roteiro daquele outro filme.

Rooney Mara e Daniel Craig em MILLENNIUM: OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (The Girl with the Dragon Tattoo)

Porém, é no desenvolvimento e no encontro dos dois personagens principais que o filme de Fincher realmente se supera. Mais seca, irônica e introspectiva que a encarnação de Noomi Rapace, a Lisbeth de Rooney Mara surge como uma personagem sofrida, solitária e em constante estado defensivo (repare como ela solta rapidamente uma explicação fisiológica para sua magreza quando interpreta mal uma pergunta de um personagem, pressupondo de imediato que está sendo julgada por ele), obrigada frequentemente a apresentar recomendações para acessar locais que facilitem a investigação e cuja aparência exótica e inconstante reflete o afastamento que esta parece buscar da humanidade em função de conturbadas experiências de vida. Dessa forma, mesmo que não a torne uma pessoa particularmente aberta ou simpática, o encontro com Mikael promove uma clara mudança em sua vida, já que, após sofrer diversos abusos por parte do sexo oposto, Lisbeth parece sentir uma rara segurança na presença de um homem, que a respeita e, como ela mesma suspeitava enquanto o investigava, é digno de confiança. Assim, não só a aproximação sexual entre os dois se torna mais aceitável, como também a psicológica, com Lisbeth passando a enxergá-lo também como uma espécie de figura paterna ou mentor - algo sugerido, por exemplo, quando ela pede autorização a Mikael para executar determinada ação no clímax da projeção.

Por tudo isso (e aí incluo também o desfecho melancólico), é fácil entender por que os americanos tenham optado por alterar a essência do título sueco original (em inglês, o filme se chama The Girl with the Dragon Tattoo, ou A Garota com a Tatuagem de Dragão), que tira as atenções da investigação em si e volta-se para aquela que é sem dúvidas a protagonista do projeto - e de fato, o caso do desaparecimento de Harriet é apenas um bom pano de fundo para acompanharmos aqueles personagens e suas particularidades. Mesmo conduzida com eficiência, a investigação por vezes soa confusa e nunca chega a ser intrigante o suficiente, sendo obrigada a recorrer, por exemplo, a uma boba tentativa de homicídio contra Mikael para movimentar a história, o que só não é pior que as posteriores deduções óbvias do tipo: "Quase fui atingido por um tiro. Fulano tem espingardas em casa. Logo, Fulano é suspeito". Por outro lado, diferentemente do longa sueco, é um alívio que Millennium não perca tempo martelando insistentemente determinadas pistas na cabeça do espectador (como os nomes seguidos de números de telefone ou as fotos de Harriet assistindo a um desfile) ou obrigando Mikael e Lisbeth a investigarem individualmente os assassinatos cometido pelo serial killer, o que seria uma tremenda perda de tempo. Aliás, a relativamente curta participação de Lisbeth na investigação é um dos grandes acertos dessa versão de Fincher, já que complementa a pesquisa feita até então por Blomkvist dentro de suas limitações como repórter, reafirma a eficiência da garota e não estende demais o segundo ato da projeção.

Tecnicamente, como era de se esperar de um filme de Fincher, Millennium é impecável. Trabalhando novamente com câmeras digitais, o diretor conta com o bom trabalho de fotografia de Jeff Cronenweth que, juntamente com a direção de arte, ressalta a frieza do ambiente e da família Vanger, além de se sair particularmente bem nas cenas noturnas ou ainda ao conferir uma correta claustrofobia às cenas de abuso sexual ou à posterior retaliação. Voltando a colaborar com Fincher após terem recebido o Oscar pelo ótimo trabalho em A Rede Social, Trent Reznor e Atticus Ross criam uma trilha discreta e incômoda que confere um tom de suspense e perigo que praticamente inexistia no longa sueco e que a trama, por si só, parece incapaz de alcançar. Além disso, os montadores Kirk Baxter e Angus Wall permitem que as tramas paralelas coexistam em harmonia e se desenvolvam da maneira adequada para uma satisfatória convergência, enquanto o departamento de som faz um ótimo trabalho tanto com os diálogos, sempre claros e limpos, quanto com os sons diegéticos trabalhando a favor da narrativa, como o ruído de certa enceradeira ou um aspirador de pó ouvido durante uma incômoda cena no escritório do tutor de Lisbeth. Por fim, a escolha de rostos pouco conhecidos do grande público ajuda a nos colocar na posição de desconhecimento e suspeita que os próprios investigadores se encontram.

Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres é, portanto, um ótimo filme que, mesmo não suavizando os elementos pesados da trama, não chega nem perto da subversão sugerida, por exemplo, pelos excepcionais créditos iniciais (que, com uma ótima versão de Immigrant Song, se estabelece como um dos pontos altos da projeção) ou pelas notícias que destacavam o excesso de estupro anal do filme e detalhes dos adereços íntimos da personagem de Mara. Livre de expectativas desse tipo, o espectador pode se deparar com um suspense investigativo interessante e eficiente protagonizado por personagens idem, que acaba de ser juntar a Clube da Luta, Zodíaco e A Rede Social na galeria de boas adaptações para o cinema comandadas por David Fincher.

Daniel Craig e Rooney Mara em MILLENNIUM: OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (The Girl with the Dragon Tattoo)