8 de dezembro de 2011

Crítica | Gato de Botas

por Eduardo Monteiro

Puss in Boots, EUA, 2011 | Duração: 1h30m05s | Lançado no Brasil em 9 de Dezembro de 2011, nos cinemas | História de Brian Lynch, Will Davies e Tom Wheeler. Roteiro de Tom Wheeler | Dirigido por Chris Miller | Com as vozes de Antonio Banderas, Salma Hayek, Zach Galifianakis, Billy Bob Thornton, Amy Sedaris, Constance Marie, Guillermo del Toro.

Começo este texto com uma observação ao mesmo tempo redundante e pertinente: este é um filme do Gato de Botas. Exatamente. Personagens secundários, roteiro, trilha sonora, fotografia - todos estão lá, entre seus altos e baixos, apenas para que o carismático e charmoso felino possa brilhar soberano e ter seu momento de glória, após longos anos servindo de alívio cômico na jornada da franquia Shrek rumo ao fundo do poço. Assim, o provável melhor subproduto daquela série reaparece aqui, em particular na primeira cena, inerte e despido de caracterizações enquanto ele próprio descreve em voice over sua fama e alguns de seus feitos, obrigando-nos a encarar o absurdo de aceitarmos tamanhas barbáries vindas de um ser tão frágil e felpudo ao mesmo tempo que nossa memória afetiva é despertada, servindo ainda para prenunciar sutilmente o menor deslumbre do longa com elementos fantásticos o que, somado à ótima ambientação da história, estabelece de uma vez por todas o personagem como uma versão de Zorro voltada para crianças.

Apostando novamente na superposição de diferentes elementos e personagens de contos de fadas e do imaginário popular para construir sua narrativa, o spin-off de Shrek ignora a história clássica do felino e traz o Gato de Botas (Banderas) como um fora-da-lei em meio a uma busca pelos lendários feijões mágicos que, como diz o conto, dão origem a uma esbelta e monumental planta que permite o acesso às nuvens nas quais o castelo de um gigante abriga uma gansa capaz de botar ovos de ouro. No entanto, os grãos encantados encontram-se em posse dos malvados Jack (Thornton) e Jill (Sedaris) - não entre em pânico, ainda não é Cada Um Tem a Gêmea Que Merece (Jack and Jill), novo filme com Adam Sandler - e o Gato de Botas não é o único no encalço do casal: Kitty Pata-Mansa (Hayek), uma corajosa e habilidosa gata, também tenta furtar os feijões a serviço do ovo antropomorfizado Humpty Dumpty (Galifianakis), que pretende concretizar os planos de riqueza que vem desenvolvendo desde criança.

Para começar, é importante deixar claro que a trama concebida por Tom Wheeler, Brian Lynch e Will Davies é péssima. Baseando-se em conflitos familiares banais, o roteiro explora inveja, traição e vingança da mesmíssima forma já feita à exaustão no Cinema, apostando numa trama batida com uma reviravolta que faz o termo "previsível" parecer o maior dos eufemismos e que consegue deixar pelo menos um furo gritante e colossal (a que se deve toda a dificuldade de roubar os feijões mágicos dos vilões?), expondo a incompetência dos roteiristas de criar algo coeso ou original. Dessa forma, o longa traz basicamente duas frentes distintas de conflitos: a sentimental, ao explorar a relação primária entre dois irmãos adotivos, e a física, resultado da impressionante recorrência de personagens ou objetos vitimados pelas leis da gravidade, isto é, prestes ou em meio a quedas (do pé-de-feijão gigante, de precipícios, cordas bambas, carruagens desgovernadas, pontes ruindo... E por aí vai!) - mas obviamente, sempre há uma solução para que os objetos não sejam perdidos ou os personagens não pereçam (menos, talvez, no caso derradeiro, quando o destino de um personagem fica descaradamente mal esclarecido). Assim, o filme torna-se infinitamente mais interessante quando foca-se em tudo aquilo que é de alguma forma alheio àqueles conflitos rasos, como as cenas de ação, de dança ou as diversas brincadeiras com a natureza felina e a personalidade do protagonista, que consegue, por exemplo, tornar-se uma figura ameaçadora de uma forma absolutamente cômica (vide a cena em que interroga homens no bar).

Isso se deve, claro, ao excelente trabalho dos animadores, que conseguem alcançar um adequado meio termo entre o realista e o cartunesco no design e na movimentação do personagem, e também à ótima dublagem de Antonio Banderas, que após três filmes dando voz ao personagem e dois interpretando o justiceiro mascarado no qual ele é inspirado, consegue conferir o tom exato ao bichano para que este exiba autoconfiança, bravura e um ar sedutor, contrariando sua aparência frágil. Também eficiente é a modelagem de Humpty Dumpty, que mantém-se fiel às descrições e aparições anteriores em outras mídias (possivelmente pouco conhecidas pelo público brasileiro, que conseguiria associar melhor o personagem a uma versão viva dos tradicionais saleiros do Sal Cisne) e traz consigo a estranheza natural de... bem, um ovo grande com membros e rosto, contribuindo para a construção do personagem tanto quanto a boa dublagem de Zach Galifianakis.

Trazendo o faroeste para o sul da Espanha, os artistas da DreamWorks concebem o universo do filme de forma bastante realista e detalhada, o que, somado à trilha sonora repleta de violões e castanholas de Henry Jackman, transforma aquele lugar no cenário esperado de uma típica aventura do Zorro. Enquanto isso, o diretor Chris Miller aventura-se em algumas montagens com telas divididas, que remetem aos bons trabalhos de Tarantino e funcionam bem até o instante que viram pretexto para piadas idiotas, e mantém a "câmera" boa parte do tempo baixa, faceando o chão, como se aproveitasse o 3D para dar a impressão que o solo do cenário termina exatamente no mesmo lugar que a sala de cinema começa, além, é claro, de adequar-se à baixa estatura dos protagonistas e de quebra tornar os antagonistas humanos mais ameaçadores. Felizmente, o diretor acerta na opção de manter uma grande profundidade de campo na maior parte do tempo, permitindo que as diferenças de foco não se tornem um incômodo ou uma distração desnecessária para o espectador que optar pela versão tridimensional. Por fim, vale ressaltar que a marca registrada do personagem - seu hipnotizante olhar de coitadinho -, diferentemente das aparições em Shrek, é encaixada aqui de maneira mais orgânica, sem a necessidade de interromper o filme para sua apreciação. O mesmo não pode ser dito, entretanto, dos números musicais - empolgantes e bem coreografados, é verdade, mas aleatórios - ou das esperadas referências pop - dessa vez, Clube da Luta ganha a mais gritante e boba delas -, ambos mais deslocados que o adequado.

Chegando até mesmo a ser surpreendentemente assustador em algumas passagens, o longa solo do bichano justiceiro é uma produção divertida e visualmente soberba, mas emocionalmente vazia, na qual a excepcional técnica tenta a todo custo - e céus, quase consegue! - disfarçar os problemas narrativos. Dito isto, encerro meu texto com um questionamento ambíguo e analógico: será que eu também fui hipnotizado pelos olhos do Gato de Botas?