26 de outubro de 2011

Crítica | O Palhaço

por Eduardo Monteiro

O Palhaço, Brasil, 2011 | Duração: 1h30 | Lançado no Brasil em 28 de Outubro de 2011, nos cinemas | Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto | Dirigido por Selton Mello | Com Selton Mello, Paulo José, Giselle Motta, Teuda Bara, Álamo Facó, Cadu Fávero, Erom Cordeiro, Hossen Minussi, Maíra Chasseraux, Thogun, Bruna Chiaradia, Renato Macedo, Tony Tonelada, Larissa Manoela, Fabiana Karla, Jorge Loredo, Jackson Antunes, Moacyr Franco, Tonico Pereira, Ferrugem e Danton Mello.

Não é de hoje que espetáculos circenses tradicionais perderam parte do apelo para com o grande público, chegando a serem considerados por grandes massas como um entretenimento cafona e antiquado. E não é à toa que, não só este O Palhaço tenha optado por situar sua trama no passado (apesar de possuir uma atmosfera adequadamente atemporal), como também os artistas de circos são constantemente ilustrados pela mídia e pela sociedade como sobreviventes de uma espécie de apocalipse cultural que quase os dizimou - isso, claro, quando não viram pauta de noticiários noturnos de domingo que eventualmente reverenciam alguns seletos artistas que conseguem ingressar numa daquelas companhias internacionais milionárias que promovem shows grandiosos, com ingressos custando fortunas. Para completar, a situação da figura do palhaço é ainda pior: como se a própria palavra ter virado um termo pejorativo difundido não fosse o bastante, esses artistas já viraram até motivo de medo e pânico disseminados (com direito até mesmo a uma designação técnica: coulrofobia), problema potencializado ainda mais pela exploração de seu lado sombrio em filmes como It - Uma Obra-Prima do Medo, Jogos Mortais ou Zumbilândia.

Ainda assim, mesmo com todos esses fatores, desafio qualquer um a conferir O Palhaço e não passar boa parte da projeção com um sorriso no rosto. Escrito por Marcelo Vindicatto em parceria com Selton Mello (que também dirige e estrela), O Palhaço é um road movie surpreendente e delicioso no qual o (bom) humor circense transcende o picadeiro e acaba esbarrando no drama pessoal de um palhaço em crise. Na história, Benjamin (Selton Mello) e Valdemar (José) são Pangaré e Puro Sangue, palhaços do itinerante Circo Esperança que, mesmo com todas as adversidades, continua viajando pelo interior do Brasil espalhando alegria por onde passa. Porém, a sobrecarga de problemas somada à desilusão com a própria profissão fazem de Benjamin um artista frustrado e introspectivo que, mesmo executando com eficiência sua função dentro da tenda, parece não sentir-se mais pertencente àquele universo.

Um dos pontos interessantes do longa, evidente já nos primeiros minutos, é a capacidade de encantar o espectador com os números circenses da mesma forma que o espetáculo atinge a plateia presente no Circo Esperança, o que é alcançado, em primeiro lugar, graças ao criativo trabalho de câmera, que evita apenas observar o espetáculo de longe e de forma estática tornando, com isso, o número de dança mais hipnotizante e as palhaçadas ainda mais divertidas, e em segundo, graças aos bons desempenhos do elenco, desde Selton Mello e Paulo José (que contaram com a consultoria do personal palhacetor Palhaço Kuxixo) até a ótima Teuda Bara, do Grupo Galpão, e a bela Giselle Motta, estreante no cinema com ampla experiência em circo. Contando pontos a favor também entram a maquigem de Marlene Moura e Rubens Liborio e o figurino de Kika Lopes, que mantém-se fiéis àquele cenário sem carregar demais nas caracterizações, a direção de arte de Claudio Amaral Peixoto e a fotografia de Adrian Teijido, que concebem a tenda como um lugar simples, aconchegante e repleto de equipamentos improvisados, e a trilha de Plínio Profeta, que acompanha harmoniosamente as performances (e no restante do longa também é excepcional).

Fora do picadeiro, a produção também não faz feio e transforma o filme em uma ótima comédia quando consegue transpor o bom humor dos artistas em cena durante os espetáculos para suas condutas e a interação entre eles. Nesse aspecto, a sequência do almoço na casa do prefeito de uma das cidades que recebe o circo é um dos pontos altos do filme: conduzida por Selton Mello com uma pitada de absurdo e um quê de Wes Anderson, a passagem diverte ao explorar o choque entre a formalidade da família do prefeito e as muitas peculiaridades dos artistas que vão surgindo à medida que estes se sentem mais à vontade e, ao invés de culminar em conflitos desastrosos, acaba gerando momentos hilários (gosto particularmente do bom humor das falas, como "Eu até sei o que 'regozijem' quer dizer, mas 'imenso' eu não sei não"). Dessa forma, mesmo enfrentando uma série de dificuldades, a trupe (com exceção, talvez, de Benjamin) consegue encontrar alegria nos prazeres simples da vida, como a companhia um do outro à noite ao som de uma música bem brega.

Outro ponto inegavelmente forte do trabalho de Selton Mello é a escolha e condução do elenco que, assim como em Feliz Natal, revela-se especialmente notável na escalação dos veteranos e das crianças. Substituindo a presença marcante de Lúcio Mauro naquele filme, Paulo José contorna com facilidade o mal de Parkinson e oferece aqui uma atuação sensível e grandiosa em sua simplicidade, com destaque óbvio para o momento em que se despede de um integrante da trupe ou, posteriormente, quando recebe um de volta. Já a jovem Larissa Manoela vive com naturalidade Guilhermina que, transitando livremente pelos bastidores do circo, serve como um artifício para que o espectador veja um ponto de vista que os demais integrantes do grupo não veem e, quando ganha uma oportunidade de pisar no picadeiro, a garota exibe uma falta de habilidade e refinamento de movimentos absolutamente adequados à ocasião. Engrandecido pelos desempenhos homogeneamente bons do elenco, o longa ainda tem como grande destaque as participações que, ditas especiais, fazem o adjetivo parecer um eufemismo: o grande Jorge Loredo, consagrado pelo personagem Zé Bonitinho, surge como um trabalhador comum que, piadista nato, consegue divertir genuinamente as pessoas que o cercam e, com isso, altera o rumo da história; já Tonico Pereira vive irmãos gêmeos que conseguem fazer de suas rotinas vazias uma fonte inesgotável de histeria; e por fim, Moacyr Franco, estreando nos cinemas aos 74 anos de idade, rouba a cena em que protagoniza um monólogo hilário do delegado Justo.

Mas o que conduz a trama é de fato o drama de Benjamin que, possivelmente nascido e criado no circo, viu-se envolvido naquele universo antes mesmo que pudesse considerar a possibilidade de exercer alguma profissão fora do picadeiro. Somando-se a isso o desgaste de ter todos os (muitos) problemas da companhia, especialmente os financeiros, recaindo em seus ombros e a frustração de não conseguir adquirir um simples ventilador (as recorrentes exigências de identidade e comprovante de residência para alcançar esse objetivo são bastante emblemáticas), é natural que abandonar o circo pareça uma escolha provável do palhaço, da mesma forma que, após finalmente conseguir comprar o tão sonhado circulador de ar, o giro involuntário causado pela corrente de ar gerada pelo movimento dos veículos que lhe concedem carona surge como uma analogia clara de que estar na estrada é o que move o protagonista. Oferecido a Wagner Moura e Rodrigo Santoro (que recusaram por envolvimento em outros trabalhos), o papel é encarnado com competência esperada e doçura infantil por Selton Mello, que permanece boa parte do longa com uma fisionomia fechada mas consegue convencer o espectador que as constantes constatações feitas por pessoas que o cercam (como a boa ponta da ótima Fabiana Karla) de que ele é uma pessoa (mesmo que involuntariamente) engraçada são honestas. E a recorrente máxima de "Na vida a gente tem que fazer o que a gente sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço", ainda que óbvia, pontua e arremata excepcionalmente bem o arco dramático e a trajetória emocional do protagonista em sua busca por uma identidade.

O que leva à natural constatação que, para a sorte do público, Selton Mello parece ser um daqueles que já encontrou aquilo que sabe fazer bem e, consagrado como ator e dono de uma filmografia pequena, mas impecável e diversificada, como diretor, se estabelece cada vez mais como um dos maiores nomes do cinema nacional.