14 de maio de 2011

Crítica | Contracorrente

Manolo Cardona e Cristian Mercado em CONTRACORRENTE (Contracorriente)

por Eduardo Monteiro

Contracorriente, Peru/Colômbia/França/Alemanha, 2009 | Duração: 1h40 | Lançado no Brasil em 8 de Abril de 2011, nos cinemas | Escrito por Javier Fuentes-León | Dirigido por Javier Fuentes-León | Com Cristian Mercado, Manolo Cardona, Tatiana Astengo, José Chacaltana, Emilram Cossio, Aydee Cáceres, Lilinana Alegría Saavedra, Germán González, Juan Pablo Olivos, Cristian Fernández, Mónica Ross, Átila Boschetti, María Edelmira Palomino, Julio Humberto Cavero, Tomás Fernández e Alfonso Gamboa.

Pôster nacional e crítica de CONTRACORRENTE (Contracorriente)
É lamentável constatar que um filme como Contracorrente, que fala sobre a intolerância humana, esteja relacionado a tantos pequenos casos de preconceito. Além da abordagem ligeiramente contida do relacionamento entre o casal homossexual central (algo que explicarei melhor mais adiante), há algo curioso envolvendo o lançamento brasileiro do filme: ele chegou às telonas pela Filmes do Mix, selo de distribuição independente da Festival Filmes criado em 2008 pela jornalista e produtora cultural Suzy Capó com o intuito de trazer ao público brasileiro produções com temática LGBT, contando ainda com o patrocínio de empresas voltadas para o público gay que ajudam, ao mesmo tempo, a divulgar os filmes para o (suposto) público-alvo e a viabilizar economicamente seus lançamentos.

Mas será que a temática é tão anormal e delicada para merecer tamanha discriminação? A distribuidora obviamente não tem culpa: mesmo que sua logomarca apareça de forma tímida e arredia no início da projeção, como se quisesse passar despercebida, foi graças à iniciativa de Capó que tivemos a oportunidade de conferir tantos bons lançamentos, como o pioneiro De Repente, Califórnia, os ótimos Patrik 1.5 e Eu Matei Minha Mãe ou este bom Contracorrente. Mas não há nada, além da temática (tratada de forma maior ou menor em cada um), que diferencie esses longas a ponto de segregá-los e, assim, a existência de uma empresa de distribuição voltada exclusivamente para este nicho e os consequentes lançamentos restritos são, na verdade, um triste retrato do conservadorismo de boa fatia público brasileiro que, no fundo, não são tão diferentes de muitos dos personagens vistos no universo deste longa.

Ambientado na pequena e simples comunidade praieira de Cabo Blanco, no Peru, o filme acompanha Miguel (Cristian Mercado), um pescador que, mesmo às vésperas do nascimento de seu primeiro herdeiro, Miguelito, com a esposa Mariela (Tatiana Astengo), mantém um relacionamento secreto com o pintor e fotógrafo Santiago (Manolo Cardona), que mora provisoriamente na região. No entanto, em uma cidade habitada por pessoas que consideram uma má companhia para as crianças, olham torto para e jogam ovos na casa de uma pessoa diante da simples suspeita de que esta sente atração por indivíduos do mesmo sexo, Miguel opta por manter a relação em um nível superficial para não destruir seu casamento e sua reputação na comunidade, enquanto Santiago anseia por uma pronta definição que o permita decidir se permanecerá definitivamente no local ou retornará para a companhia da família. Porém, após um acidente fatal que tira a vida do pintor, Miguel passa a ver e interagir com o fantasma de Santiago, o que o leva a rever seus próprios receios e inseguranças.

E é exatamente nesse ponto que reside o diferencial do filme. Ciente do suicídio social que seria assumir sua homossexualidade em um ambiente inóspito como aquele, Miguel é obrigado a repensar seu próprio preconceito ("Eu não sou aquilo", afirma ele para Santiago, em certo momento) para resolver a angustiante situação em que se encontra. Assim, é interessante notar que ele só começa a aceitar de fato sua natureza homossexual quando consegue viver sua paixão sem julgamentos externos, o que só é alcançado na interação com o fantasma de Santiago (que não é visto por ninguém além dele). Mas, nesse ponto, é o pintor quem deseja partir (para o além, o pós-vida, sei lá), algo que, somado às fofocas surgidas depois que indícios da relação entre os rapazes foram descobertos na casa do então desaparecido, coloca Miguel em uma encruzilhada que se torna o centro da narrativa (e certamente justifica o título do longa): ou ele vai contra seus sentimentos em prol da manutenção do prestígio social, ou enfrenta suas próprias inseguranças e abraça sua verdadeira natureza para que possa viver plenamente com si mesmo e com a memória de Santiago.

Optar por esta última opção, obviamente, não é uma tarefa fácil, já que o preconceito faz parte do dia-a-dia daquelas (e de muitas outras) pessoas mais do que elas mesmas conseguem notar - o que é bem representado já na primeira cena, quando Miguel conversa com seu primogênito ainda na barriga da mãe e é censurado por ela (que acredita que os fetos escutam todos os diálogos externos ao útero), já que, como ainda desconhecem o sexo do bebê, chamá-lo de Miguelito poderia gerar uma "confusão" (leia-se: indecisão sobre sexualidade) durante seu desenvolvimento, caso a criança viesse a ser uma menina. A relação com a esposa, aliás, fornece diversos indícios sobre as reais preferências de Miguel: mesmo que goze de uma boa convivência com Mariela, o homem constantemente faz falsos juramentos à mulher, que também tem ciência da falta de credibilidade do marido ("Nunca jure por Miguelito!", esbraveja ela em certo momento), ao passo que a relação com Santiago sempre foi notadamente marcada por sinceridade, visto que em momento algum ele promete, por exemplo, tomar medidas para resolver o impasse da relação secreta, por consciência das dificuldades de cumpri-la.

Manolo Cardona, Cristian Mercado e Tatiana Astengo em CONTRACORRENTE (Contracorriente)

Ainda nesse aspecto, o diretor é inteligente ao criar um sugestivo plano em que Miguel e Mariela são vistos por trás das grades do berço de Miguelito, sugerindo que aquele ambiente familiar representa uma espécie de prisão para o protagonista, da mesma forma que, durante uma tentativa de superar o escândalo envolvendo sua suposta homossexualidade e retomar o condenado casamento com marido, Mariela muda o canal da televisão para interromper a exibição de uma telenovela, como se quisesse expurgar toda e qualquer falsidade (algo comum nessas produções televisivas, como os próprios personagens observam) que pudesse haver no relacionamento do casal e, ao mesmo tempo, forçar Miguel a esquecer seu passado com outro homem assistindo a uma partida de futebol, já que é o que um "homem de verdade" deveria fazer - sem perceber que, simbolicamente, está lhe privando o "Direito de Amar", nome da novela brasileira que estava sendo exibida.

O boliviano Cristian Mercado, por sinal, faz um ótimo trabalho no papel de Miguel e carrega o filme com segurança e sensibilidade, além de, junto com o colombiano Manolo Cardona, conferir veracidade à relação do casal, que parece bem à vontade em todas as cenas envolvendo demonstrações de afeto. O restante do elenco também apresenta boas interpretações, falhando pontualmente sem, contudo, influenciar significativamente o andamento do longa. Mas a trama também apresenta alguns problemas: a natureza das aparições de Santiago, por exemplo, ora tende ao sobrenatural, como na boba cena do jogo de cartas ou no ressurgimento de uma vela acesa, e ora parece ser apenas uma projeção da mente de Miguel, como quando o falecido afirma que não tem culpa de aparecer toda vez que o pescador pensa nele - o que também é contradito pela dificuldade que Miguel passa a ter de "encontrar" com Santiago na segunda metade do longa, quando precisa recorrer aos berros a ambientes marcantes da relação dos dois.

Não há dúvidas de que o conflito do protagonista soa muito mais interessante quando desconfiamos da segunda opção, já que a projeção que Miguel faz de Santiago diz muito sobre ele mesmo e torna o processo vivenciado ainda mais complexo. No entanto, o filme depende do aspecto sobrenatural (e dos desdobramentos das tradições locais envolvendo rituais feitos com os mortos) para que possa abraçar a estrutura adotada, o que o enfraquece por, dentre outras razões, surgir como o único aspecto efetivamente irreal da narrativa. Outro problema é o quase ausente sofrimento por parte de Miguel com a morte do parceiro, que parece compensar com facilidade a perda do amante com a companhia de sua persona fantasmagórica. Também é um insucesso a opção de representar a relação entre os dois homens de forma mais contida, cedendo aos tabus envolvendo a homossexualidade e a nudez masculina - afinal de contas, o contraste entre a escura cena de sexo com Santiago e a iluminada transa com Mariela poderia perfeitamente ser explicado como uma estratégia para ressaltar o caráter secreto do affair entre os rapazes, caso os dois não corressem nus em direção ao mar imediatamente após o ato sexual. Para completar, o desenvolvimento geral da narrativa revela-se mais convencional que o necessário, ofuscando um pouco a eficiência da mensagem.

Mas, no geral, a direção do estreante Javier Fuentes-León (também responsável pelo roteiro, com claras referências a Dona Flor e Seus Dois Maridos) é marcada por mais acertos do que erros, desde a concepção de planos que dizem muito sobre os personagens - como aquele em que o protagonista observa um galo, que no galinheiro é o macho-alfa, ou o outro em que Miguel e Santiago parecem estar separados no quadro por uma parede (mesmo que a barreira física não exista) enquanto discutem em uma casa abandonada, num reflexo dos prováveis rumos da relação - até belas transições com mensagens sutis: imediatamente após a descoberta de uma tela com o corpo nu de Miguel na casa de Santiago há um corte para a igreja, onde o padre diz "corpo de Cristo" durante a comunhão, sendo que é a partir da descoberta dessa pintura que o protagonista passa a ser "crucificado" pela população local (a barba e o cabelo do personagem apenas ajudam a reforçar a ideia). A presença da igreja, aliás, além de ressaltar o aspecto conservador da comunidade, surge como uma oportunidade perfeita de alfinetar uma instituição que, ao mesmo tempo que condena a homossexualidade, prega mensagens de aceitação e amor ao próximo (aqui, adequadamente lidas pelo próprio Miguel durante uma missa). Também não à toa, Miguel utiliza constantemente (não tira nem durante o sexo) um terço pendurado no pescoço, representando sua submissão ao conservadorismo que o cerca - e Fuentes-León demonstra inteligência ao fazer com que o personagem abandone o objeto minutos antes de alterar de vez sua postura (e também é interessante notar que Miguel passe a vestir camisas xadrez, usadas por Santiago ao longo de toda a projeção, como se incorporasse um pedaço de ex-companheiro à sua vida).

Por fim, Contracorrente ainda consegue ressaltar que, enquanto uma pessoa não parar de se importar com o que os outros pensam sobre ela, nunca conseguirá ser plenamente feliz e realizada. E, no frigir dos ovos, por mais forçada que seja a sutil mudança de comportamento do povo de Cabo Blanco, a mensagem arrematada nos minutos finais é eficiente, contundente e universal: quando se trata de ser humano (um ser sujeito a sofrimentos e imperfeições), a intolerância é nada menos que abominável.

Cristian Mercado e Manolo Cardona em CONTRACORRENTE (Contracorriente)